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Pequenos nadas do nosso quotidiano

Este curto texto também podia ser intitulado “O cantor de rua e o sem-abrigo” ou “A solidariedade improvável”.

O autor destas linhas não perde tempo com lamechices e está numa fase da vida na qual são já muito poucos os acontecimentos que o impressionam, despreocupando-se, inclusive, com a melhor ou pior sorte dos animais domésticos e domesticáveis, hodiernamente protegidos por direitos que em muito ultrapassam aqueles com que alguma vez imaginou. Privilegia, sim, o trabalho indefeso das formigas e dos aracnídeos, que não se cansa de apreciar na sua labuta diária, incapaz de pensar, sequer, em esmagar aqueles que, por vezes, se tornam incomodativos!

Cada ser humano – e só nós o somos – é o que é, tornando-se, sim, importante respeitar os direitos dos outros, desde que estes pratiquem reciprocidade nessa permuta.

A história que passo a contar, muito recente, aconteceu na cidade de Braga, mas podia ter acontecido em Vila Real, Monção, Montalegre, Vila Praia de Âncora ou em qualquer outra localidade. De certo modo, acabou por se tornar num dos tais raros acontecimentos que ainda impressiona quem aqui escrevinha.

Assim, há dias, caía a noite, subia eu, desassossegado, a Avenida da Liberdade com destino certo, a pensar na complexidade da vida. De repente, quando passava junto do antigo edifício dos Correios – espaço de que não consigo fixar o actual nome –, comecei a ouvir um cantar harmonioso, em inglês, acompanhado por menos suave viola, porque electrificada.

Passava naquela parte superior da Avenida, que agora se tornou multicolor e perfumada até bem próximo do edifício do Turismo. Uma vez ali chegado, agradecido ao artista, esportulei-o com uma moeda forte, porque merecida, que depus na respectiva caixa instrumental, brindando-me o dito cujo, agradecido, com uma nota musical mais alta.

Segui o meu caminho, Rua dos Chãos acima, até ao inestético túnel que marca o fim do Largo dos Penedos e, uma vez cumprido a acto a que tinha de me sujeitar, que me deixou mais sossegado, desci a mesma rua até à Arcada, de novo acompanhado e amparado pela sonorização musical com que a subira.

De repente, o silêncio!

Olhei, e o que vi deixou-me estupefacto!

E o que vi? Vi um conhecido moedeiro, provavelmente um dos sem-abrigo desta cidade, aproximar-se do cantor de rua e trocar com ele breves palavras. Em seguida, o cantor baixa-se, apanha umas moedas do parco pecúlio aforrado na sua jorna diária, e entrega-as ao opositor sem-abrigo, não sem que antes lhe tivesse dado um abraço abrangente, que me pareceu sentido e solidário.

Sem mais palavras, o sem-abrigo seguiu o seu caminho, provavelmente, agora, na procura do aconchego o estomacal, talvez em greve de zelo até àquela hora, com nacos de pão endurecido, doados pela padaria mais próxima, ou com uma sandes de courato regada a tinto rasca na tasca da esquina.

Ficou o cantor a juntar os seus haveres, a que se seguiria, provavelmente, uma jantarada vegan, lavada a água, chá ou cerveja artesanal sem álcool, ou uma ida ao fast-food vizinho, para um inevitável hamburger, simples ou duplo, conforme a safra diária, acompanhado a coca-cola.

Prossegui o meu caminho, de novo anestesiado pelo perfumar multicolor e enjoativo da Avenida que me propunha, agora, descer, saudoso de árvores de grande porte que ali imaginava a preencherem aquele amplo espaço, agora entretido com o pensamento focado naquele pedaço solidário de vida que acabara de presenciar, autêntico pequeno-nada dos que preenchem o nosso quotidiano.

Em jeito de conclusão, perguntei-me se aquele momento de vida fora improvável ou, pelo contrário, necessariamente previsível?

Que os leitores respondam; eu fico-me pela dúvida!

Nota: Continuo a escrever como aprendi


Autor: José António Barreto Nunes
DM

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21 março 2019