Em silêncio, atento e espantado. Assisti desta forma à passerelle que estenderam à memória do Paulo nas últimas semanas, o que me deu a vantagem de poder agora refletir neste espaço sobre a herança e conceitos.
Em primeiro lugar, espanta-me que uma criadora como Regina Guimarães consiga simultaneamente criticar a capacidade criativa e transformadora, quando essa é uma condição do Ser, seja ela na dimensão que convir à autora; por outro lado, tenho dificuldade de entender como um processo disruptivo e sem o massacrar, como se partisse de uma premissa do “genial”, pode ser tão mal assimilado, simplesmente porque o é. Em Paulo Cunha e Silva, tudo é questionável, a tal ponto que desde a sua juventude, não se limitou a ser um intérprete da realidade, mas um consumidor da sensibilidade gerada pelo espaço-tempo da história urbana, dos seus epílogos e evicções. Paulo tinha e eu subscrevo, a convicção que os ensinamentos de Zygmunt Bauman, são como todos os outros, passíveis de interpretar, assimilar e transformar em algo de novo. A sua visão transporta-nos para uma cidade que se ergue como um ser vivo, com os diferentes órgãos dissipados pelo corpo (território), fluindo nas suas veias (ruas) com a mesma cadência e qualidade. A cultura, enquanto instrumento da solvabilidade humana, é tão ou mais importante quanto a capacidade de democratizar o seu acesso, fortalecendo o equilíbrio entre centro e periferia. Arrojar nos antípodas que se cacarejam numa velocidade estonteante, sempre que as suas convicções são dinamitadas pela ação disruptiva de quem ousou pensar e fazer diferente, não pode ser criticável, mas antes louvável, sobretudo quando se trata de alguém que aproximou diferentes visões, sensibilidades e ideias. Num artigo de Opinião no Público, o escritor Rui Lage sintetiza com perícia esta capacidade de transformar o conhecimento, de acrescentar valor ao que já sabe ou conhece: “Paulo Cunha e Silva fez o que é corriqueiro na história das ideias, da arte e do pensamento: passar um conceito previamente disponível pelo filtro da reflexão subjetiva e tirar de lá outra coisa”. Essa coisa, não é como escreveu a dramaturga, “uma burla intelectual”. Espanta, por isso, ver uma criadora confundir a injustiça social que grassa em cidades como o Porto com a espantosa capacidade que o antigo vereador da Cultura, imprimiu, quebrando as regras de um jogo que estava Há muito tempo entregue aos mesmos, com os mesmo resultados e aí sim, protagonista de um estreitamento cultural da cidade. As suas palavras configuram uma certa amargura por aquilo que Paulo foi capaz e que Regina não viu ou não quis ver. A Mudança não pode ser vista como inimiga, é antes protagonista e só assim pode ser entendida pelos agentes culturais. Apesar de se ter afastado dos valores iniciais do pensamento de Bauman, Paulo Cunha e Silva fez o que deveria ter feito. Querer como pretenderam os sociólogos João Teixeria Lopes e Tânia Leao, resumir a sua capacidade a uma “liberdade fantasiosa”, é não perceber a mais importante lição do criador: a transformação. Por muito que doa a quem tiver de doer, o Porto, saído do cinzentismo anterior, não podia ser menos disruptivo que ao que foi, nem menos presente e impregnante. O legado de Paulo Cunha e Silva é tudo isso e, simultaneamente, uma janela aberta para que outros ousem pensar a cidade, tornando-a não no caos de Bauman, mas amiga das oportunidades, das fluências e do equilíbrio social. O seu trabalho pode e deve ser alimentado, pode e deve ser mastigado vezes sem conta, desde que daí, como acontece com qualquer área do Conhecimento, surja a capacidade de gentrificar de forma positiva, o exercício de cidade em todas as suas dimensões, nomeadamente naquela que é cara a Regina Guimarães: a sustentabilidade social. Ao contrário do que diz, os agentes culturais “não são utilizados para transformações(…) muito graves. Podem e são, como se lhes pede, protagonistas da Mudança; não devem e não podem ser “fantasmas inócuos”, nem espetadores de coxia.
Autor: Paulo Sousa