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Pássaros, peixes e cabras

Múltiplas tradições culturais têm sabido preservar eloquentes ensinamentos sobre o dever de hospitalidade e sobre o benefício resultante do encontro com o que é diverso. Algumas dessas sábias lições apresentam-se sob a forma de pequenas narrativas protagonizadas por animais.

O escritor e encenador Wajdi Mouawad evoca uma dessas histórias, uma lenda persa, em Tous des oiseaux, uma peça de teatro que, desde o início do ano, já passou por uma dezena de palcos de França, Bélgica e Canadá. A próxima representação decorrerá no Carrefour International de Théâtre, no Quebec, Canadá, no dia 3 de Junho. Se será difícil estar nesse dia na plateia, é, pelo menos, fácil – e recomendável – comprar o CD Tous des oiseaux*, com a magnífica música que Eleni Karaindrou compôs para o espectáculo. Wajdi Mouawad escutou “A lenda do pássaro anfíbio” quando era pequeno e ainda hoje a considera tocante pelo que diz sobre a nossa época, o nosso mundo e a nossa relação com o Outro. “Com o inimigo”, acrescenta ele.

Conta a lenda que, pouco depois de nascer, um pássaro começa a voar. Fá-lo pela primeira vez sobre a superfície de um lago. Apercebe-se dos peixes que nadam debaixo de água. É tomado por uma imensa curiosidade em relação a esses animais tão diferentes de si. Decide que vai mergulhar para ir ao encontro deles, mas o bando de pássaros, a sua tribo, retém-no e avisa-o: “Nunca vás para junto dessas criaturas. Elas não são do nosso mundo, nós não somos do delas. Se fores para o mundo delas, morrerás; assim como elas morrerão se escolherem vir até nós. O nosso mundo vai matá-las e o mundo delas vai-te matar. Nós não fomos feitos para nos encontrar.”

A lenda prossegue referindo que, com o passar dos anos, uma profunda melancolia toma conta do pássaro, que continua a observar esses peixes sem os poder alcançar. Certo dia, em que vai ao lago para, mais uma vez, os admirar, conclui uma reflexão que com o tempo foi amadurecendo: “Eu não posso viver assim a minha vida, faltando-me o que me fascina. Prefiro morrer a viver a vida que levo.” Ninguém o impedirá agora de mergulhar. A conclusão da história é, evidentemente, inesperada. O amor do pássaro pelo que é diferente é tão grande que, no instante em que atravessa a superfície do lago, lhe crescem as guelras que lhe permitem respirar debaixo de água. Então, encontrando-se no meio dos peixes, diz-lhes: “Sou eu, sou um dos vossos, sou o pássaro anfíbio.”

Wajdi Mouawad não indica qualquer resposta que os peixes tenham dado ao novo companheiro, mas há uma história judaica que mostra o que pode suceder numa situação idêntica. Os protagonistas não são aves, nem peixes; são cabras, além do dono de quase todas elas e do pastor do rebanho.

Tal como nos é narrado em Do éden ao divã**, uma antologia de textos judaicos, organizada por Moacyr Scliar, Patrícia Finzi e Etiahu Toker, os dois homens entabulam um breve diálogo. Conta o pastor que há uma cabra selvagem que acompanha o rebanho e que, à noite, o segue até ao redil. “É desta que deves cuidar”, indica-lhe o dono do rebanho. O pastor fica perplexo e indaga porque é que assim deve ser. “Tencionas ficar com ela?”, pergunta. O dono responde-lhe que não. Depois fornece-lhe o motivo: devemos ser gratos aos que se juntam a nós.

Se uns desejam partir ao encontro do diverso, outros regozijam-se quando acolhem o que é diferente. Não são apenas as histórias de animais que o testemunham.

*Munique: ECM, 2018

**Lisboa: Tinta da China, 2019


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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26 maio 2019