Na homilia que proferiu, em Fátima, aquando da peregrinação do passado dia 13, D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa, afirmou categoricamente que “todos teremos de reaprender a ‘gramática da hospitalidade’: somos responsáveis pela saúde, o bem-estar, a alegria e a salvação dos outros! A hospitalidade é um ato racional permanente de acolhimento do outro. E o ‘grau de civilização de uma sociedade pode medir-se precisamente em função da sua hospitalidade’ (Byung-Chul Han, A expulsão do Outro)”.
É na relação com os outros e com o Outro que o ser humano constrói a sua identidade, sendo esse o registo em que se alicerça e enquadra a hospitalidade. Sem dúvida que “a civilização deu um passo decisivo, talvez o [único] passo decisivo, no dia em que o estrangeiro, de inimigo (hostis) se transformou em hóspede (hospes)” (Jean Danielou), elevando a hospitalidade à categoria de indicador civilizacional.
Como todos os fenómenos humanos, é uma realidade complexa, de largo espectro e denso significado. Regista nuances diversificadas, de acordo com as épocas, as circunstâncias e as culturas em que se inscreve. É tão grande a sua carga antropológica que deixou e deixa marcas em todas as culturas e nos textos da memória coletiva de todos os povos. A Sagrada Escritura e a literatura greco-latina fundamentam e reforçam esta ideia, ao apresentarem-na como expressão do humano e ato humanizador, indispensável à vida.
Independentemente dos significados que os dicionários dela apresentam, assume-se sempre como responsabilidade de tomar o outro a seu cuidado. É na deslocação e errância (homo viator é uma das definições clássicas da humana condição) ou na necessidade que melhor e de forma mais tangível se faz a experiência da fragilidade humana e se aguça a consciência da alteridade. Emerge, então, a relação que, associada à dependência, faz vir ao de cima a necessidade, a importância e o valor da hospitalidade.
Os serviços prestados ao hóspede (agasalho, higiene e alimento) são relevantes, mas mais importante é a escuta do que ele tem para comunicar. Se Emmanuel Levinas disse que “a linguagem é hospitalidade”, também “a hospitalidade é um pacto de linguagem. É um espaço/tempo onde o contar se realiza no contar-se. Diante dos que escutam, abre-se a possibilidade autobiográfica, que permite recompor os fragmentos, enlaçar os fios quebrados, encontrar as palavras que segredam a íntima arquitetura da vida” (J. Tolentino Mendonça). E podemos acrescentar que, sendo a linguagem fundamental no processo da hospitalidade, este é já por si uma eloquente linguagem, mesmo quando a barreira da língua ou outras dificultam ou mesmo impossibilitam a comunicação verbal ou outros modos de comunicação.
Na sua polissemia e amplitude, a hospitalidade possui uma dinâmica transformadora, fazendo “passar do limbo da indiferença ao círculo da empatia” (Alfredo Teixeira), provoca a relação e gera integração. Inscreve-se, por isso, entre os imperativos que possibilitam um acréscimo ou reforço de humanidade, pois o acolhimento do outro reconhece e consagra o direito à diferença, combatendo os mecanismos da exclusão social e/ou eclesial e afirmando-se, por isso, inclusiva.
Facilmente se conclui ser a hospitalidade um dos traços essenciais da humana forma de ser e de estar. A espessura do seu sentido e a profundidade do seu alcance relegam-nos para a importância que assume na vida da sociedade e da Igreja, assunto que abordaremos na próxima semana.
*Professor na Faculdade de Teologia – Braga e Pároco de Prado (Santa Maria)
Autor: P. João Alberto Correia
Para uma gramática da hospitalidade (I)

DM
22 junho 2020