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Para não ser como um mocho!

Ao final da manhã, o vizinho estava a sair de casa para levar a passear, mesmo em cadeira de rodas e por entre alguma chuva, a mulher um tanto entrevada desde há meses… Este ritual é, nas palavras do marido, uma forma de ter contacto com as outras pessoas, não sendo, na sua visão, alguém como o mocho, que viveria taciturno consigo mesmo e sem ligar aos demais… Num tempo em que as pessoas se vão fechando – ou talvez mais encerrando – em si mesmas, sem olharem aos outros, esta perspetiva de sair de casa e de levar alguém ao contacto com os outros é – ou devia ser – uma boa dose de abertura para com os mais próximos, podendo ser os vizinhos muito mais do que a presença dos familiares diretos… tão ‘ocupados’ andam com as suas vidas! = Como ave notívaga, o mocho encerra alguma simbólica ambígua, tanto podendo significar algo que tenha a ver com a sabedoria, a vigilância e a contemplação – aparece, por vezes, associado à representação da matemática – como ainda pode ser interpretado numa vertente mais sombria, associado a episódios portadores de más notícias, onde a morte seria um deles, e mesmo com um sentido algo esotérico relacionado com a bruxaria e afins… Em certos contextos socioculturais a alusão ao mocho é algo mais alusivo ao prenúncio malévolo do que como portador de boas notícias… Porque vive e anda de noite, a sua visão é associada a uma capacidade invulgar de ultrapassar as dificuldades e mesmo entendido como uma expressão de sabedoria acima da média… sobretudo humana. = Quando o tal vizinho utilizou o recurso de ‘não ser como o mocho’ talvez tenha pretendido fazer sair da escuridão e da penumbra em que tantas pessoas – ele dizia-o por experiência familiar – se escondem e refugiam, evitando o contacto com os outros e podendo fecharem-se numa espécie de ensimesmamento… Há, no entanto, uma outra possibilidade de valorização de ‘não ser como o mocho’, na medida em que as pessoas saindo da circulação como que podem entrar num processo de pré-morte, sendo relegadas para um espaço onde (quase) perdem a sua identidade e marginalizadas, mesmo que inconscientemente, abdicam de incomodarem os mais próximos e até os familiares… Todo este processo pode deixar marcas irremediáveis, sobretudo, se as pessoas que assim vivem, têm tendências para o isolamento e a autoexclusão… Hoje há uma larga fatia da nossa população que vive isolada, passando uma boa parte do seu dia votada a uma espécie de abandono… Não basta tentar fazer sair essas pessoas de casa, se não forem valorizadas e atendidas às suas necessidades e potencialidades mais básicas e essenciais. = Vivemos efetivamente numa encruzilhada, onde a egolatria tem mais espaço e oportunidade do que a capacidade de repararmos no Cristo de braços abertos e de coração trespassado na Cruz. Esta deverá polarizar a nossa atenção nos dias que se aproximam… de Semana Santa e de Páscoa. Com efeito, quando andamos tanto a olhar para baixo – até parece que perdemos algo e tentamos encontrá-lo avidamente – tornar-se num grande desafio essa atitude de olharmos para o Alto e de vermos no Crucificado quem responde às nossas aspirações mais subtis e audaciosas. Enquanto não soubermos colocar o olhar na meta, andaremos a titubear por entre as quedas nas etapas… Quem melhor do que Jesus para nos ensinar a percorrer o nosso caminho – nem sempre tão sacro quanto seria desejável – de cada dia e de toda a vida: n’Ele, por Ele e com Ele aprendemos a não ficarmos tropeçados nas quedas, mas, com a ajuda dos outros e ajudando-os também, haveremos de ser capazes de vivermos em abertura àqueles/ /as que Deus coloca no nosso caminho, confiando neles e sendo amparo uns para os outros. Desejamos para todos quantos nos possam ler que tenham um tempo de vivência do mistério pascal com serenidade e simplicidade, com ousadia e com harmonia, com fidelidade e espargindo a felicidade de acreditarmos em Cristo Jesus… O mocho foi entendido em certas épocas da cristandade como prefiguração de Cristo (Lc 1,79), como referência à capacidade de guiar as almas que estavam nas trevas… para a paz!
Autor: António Sílvio Couto
DM

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26 março 2018