E quando ele subiu ao patamar da Capelinha das Aparições para rezar, em silêncio, diante da imagem da Senhora de Fátima, a multidão fez espontaneamente silêncio, como que afectivamente sintonizada com ele, gesto que deixou impressionados os jornalistas que o têm acompanhado nas suas viagens: nunca tinham visto nada assim. As pessoas não reagiram como a uma grande figura de líder religioso (esse era o perfil de João Paulo II, o grande líder religioso no palco do mundo), mas a uma figura de Pai espontaneamente próximo das pessoas, envolvendo a todos com o seu sorriso humilde, mas seguro. Um Pai que sabe acolher a diversidade de caminhos dos filhos sem os censurar nem julgar: quer apenas que eles aprendam a linguagem comum da fraternidade. Que fala aos homens sem recorrer a uma linguagem religiosa arcaica que já ninguém usa. Que gostava de reencontrar a autenticidade e simplicidade da fé da Igreja primitiva e aconselha os crentes a fugirem do clericalismo como de uma peste na Igreja.
2. Outro aspecto curioso foi que, assumindo-se como peregrino, trouxe gentilmente uma flor (uma rosa de ouro) para oferecer ao santuário da Senhora de Fátima, que o convidou. E ele mesmo a colocou delicadamente aos pés da sua imagem. Ele sabia que estava apenas diante de uma representação iconográfica de Maria, mas sabia também que isso não impede que ela possa realmente estar ali presente, embora oculta aos nossos olhos, pois Nossa Senhora, como todos os bem-aventurados, não moram num Céu distante, lá para além das estrelas, mas vivem num estado de glória da presença de Deus, que é omnipresente. Maria e todos os bem-aventurados participam, através da ressurreição de Jesus, nessa condição de omnipresença. Podemos rezar-lhe em qualquer parte do mundo. Depois de Jesus ressuscitado, o novo templo de Deus é no coração do homem. Os santos vivem imersos em Deus, sem serem Deus. Não precisam de um espaço físico para estar, como nós, que vivemos na condição física da matéria que ocupa espaço e está circunscrita a um lugar. O Céu pode ser em todos os lugares. Aqui, no mesmo lugar onde o leitor está, está o Céu, com Maria e com todos os santos em Deus. E pode comunicar com eles, na sua língua (eles entendem todas as línguas) e através do seu coração.
3. A figura do Pai e a figura da Mãe. Hoje, fala-se mais da figura da Mãe que da figura do Pai. A figura do Pai, pela qual Deus nos foi revelado por Jesus, tem sido muito maltratada. Reduziram-na a uma figura poderosa de um Deus de justiça que castiga os pecadores, aos quais só restava, como refúgio de salvação, acolher-se aos braços da Mãe. Por isso, este Papa se tem preocupado tanto em recuperar teologicamente a figura de Deus como Pai e o papel de Maria na História da salvação. Em termos culturais, a figura da Mãe é mais da ordem do coração, enquanto a figura do Pai é mais da ordem da realidade. Esta aparente oposição tem o mérito de, estando os dois unidos pelo amor, a realidade da vida estar também envolvida pelo coração e o mundo se poder tornar num lugar mais fraterno. Este envolvimento afectivo da figura materna é tão profundo que se torna fundador da personalidade dos filhos e marca a sua vida, positiva ou negativamente, conforme o seu desempenho. O amor é anterior à razão. É como um manto envolvente de ternura que protege os filhos e lhes transmite confiança e segurança. E, como a beleza está associada ao afecto, a figura da Mãe é sempre a mulher mais bonita. Pois, uma das coincidências que impressiona na Historia de Fátima é o uso da mesma linguagem afectiva, relatada pelos videntes: quando Nossa Senhora lhes apareceu, eles sentiram-se envolvidos por um manto de luz e de ternura que dela irradiava e como que suspensos da sua beleza, que jamais esqueceram.
4. Há quem pretenda reduzir o fenómeno de Maria como Mãe às antigas crenças culturais onde a figura da Mãe é venerada como deusa. Não é verdade. Antes de mais, é preciso entender a origem dessa teoria cultural: os povos, não sabendo explicar o fenómeno maravilhoso da ligação mãe-filho, que jamais se apaga e faz parte da condição humana, transportaram-no para o campo do religioso, divinizando a figura da Mãe. Isto é, procuraram explicá-lo através da religião. Mas, no caso dos cristãos, não se trata disso. Foi isso que o Papa quis vincar bem, em Fátima, quando repetiu: afinal, temos Mãe! Jesus, antes de morrer na cruz, entregou a sua Mãe ao discípulo João (e, na pessoa dele, a todos os discípulos, até ao fim dos tempos) para que cuidasse dela: eis a tua Mãe! E, desde essa hora, o discípulo passou a cuidar da Mãe de Jesus. E ela também a cuidar dele e a acompanhar o nascimento da Igreja, isto é, todos os discípulos, até aos dias de hoje. É deste facto que nasce a tradição cristã de que Maria é a Mãe da Igreja. E é daqui também que parte a tradição da devoção do mês de Maio (por ser o mês das flores) como o Mês de Maria, devoção que já consta desde a Idade Média.
(Nota: o autor não escreve de acordo com o chamado Acordo Ortográfico)
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva