Os jornalistas que acompanharam a viagem do papa Francisco ao Iraque, de 5 a 8 de Março, não poupam nos adjectivos: arriscada, quase temerária, a mais emblemática de todo o pontificado, etc. Mas Francisco encarregou-se de dizer que foi uma viagem muito pensada, rezada e fruto da inspiração da Providência Divina, a que deu seguimento, porque nela confia inteiramente. Por isso, o arcebispo de Palermo, Corrado Lorefici, afirmou que o verdadeiro horizonte a ter em conta nos dias de viagem ao Iraque é o da fé. E como Abraão, cuja terra natal visitou, a viagem de Francisco foi um acto de fé de um homem que faz da simplicidade e ousadia evangélicas a estrela polar do seu ministério.
Esta viagem mostra-nos a fé do Papa, a sua abertura ao risco, a sua convicção de que é preciso comprometer-se radicalmente, perante uma situação tão difícil como a do Iraque. O Papa abandonou as próprias certezas, a própria terra, os próprios pontos firmes, para se fiar de Deus, antes de qualquer outra consideração. E é este espírito que faz da peregrinação ao Iraque um acontecimento da história de Abraão, porque nos fala da fé profunda de um crente, entendida como ir ao encontro do outro, de maneira radical e no nome de um Deus que veio ao encontro dos homens, e se entregou a Si mesmo por isto, como nos mostrou Jesus de Nazaré.
Francisco foi ao Iraque, porque sentiu que devia testemunhar o que escreveu na 'Fratelli Tutti': a necessidade absoluta de uma fraternidade integral, de um reconhecimento do outro como irmão, algo que precede todo o ponto de vista político ou religioso. «Francisco foi um grande cristão no Iraque, porque foi um homem que se colocou diante de outros homens, os olhou nos olhos e lhes falou ao coração. É esta, aliás, uma componente humana decisiva no magistério do Papa, e por isso mesmo é profundamente cristã, e profundamente franciscana, tal como o foi a do seu inspirador, de quem tomou o nome. Francisco foi dizer no Iraque que, para quem crê, não há inimigos. É esta a lógica espantosa do Evangelho». O que não quer dizer falta de inteligência ou de reflexão, mas liberdade, pureza, capacidade de gerar, de fazer nascer, com nobreza de ânimo e de verdade.
Em Ur dos Caldeus, o Papa encontrou os seus irmãos em Abraão, não como filho e herdeiro privilegiado, mas como irmão ao lado de outros irmãos. O sentido religioso da viagem consiste precisamente na renúncia a qualquer afirmação de primazia, para ser conjuntamente filhos de um mesmo pai na fé. «Esta pertença comum não é exclusividade. Abraão é pai das multidões, fundador da humanidade».
Graças a esta perspectiva universal, no encontro inter-religioso de Ur, as religiões não apareceram como bandeira identitária que as divide, mas como poder que une, força que derruba os muros e anuncia a paz entre os homens. A religião é, com efeito, intimamente, o reconhecimento de ter necessidade do Outro para existir. E onde não prevalece o 'eu', onde não se exalta o primado dos 'meus', dos 'nossos', aí começa a paz. Foi este credo que recitaram Francisco e o venerável Al-Sistani no seu encontro sóbrio, mas tão intenso, que deixou Francisco com uma profunda admiração pela valentia daquele Ancião e tudo o que tem feito pelos cristãos, o respeito pelos outros e pela vida.
Só neste contexto, poderemos falar de política, numa acepção alta. A viagem do Papa foi política, no sentido em que se preocupou com o bem da polis, que aqui é o espaço comum das igrejas, com uma bendita abertura da igreja Latina para com a do Oriente, mas também a cidade dos homens que, hoje mais do que nunca, têm necessidade de princípios universais, de diálogo e de cooperação para fazer com que o amanhã não seja tempo de guerra e de conflitos destrutivos, mas tempo de acordo e partilha, ou seja, tempo de paz. Não se trata de mera astúcia diplomática, mas de espírito franco de encontro e de colaboração para uma política de paz. Foi esta a mensagem política da viagem do Papa. E por isso mesmo se tornou profecia que tocou tantos e tantos que o encontraram e com quem ele falou, mormente os jovens, incentivando-os a apostarem na reconstrução da sua pátria; as mulheres, que tão martirizadas têm sido com a perseguição e as guerras; e todos os que sofrem a perda de familiares e amigos, bem como dos próprios bens, mas a quem diz que não é o ódio e a guerra que têm a última palavra, mas a misericórdia, o perdão, o amor e a paz.
Autor: Carlos Nuno Vaz
Papa Francisco no Iraque: a ousadia do anúncio evangélico nas mais arriscadas periferias
DM
20 março 2021