As duas homilias aos cardeais, no consistório de criação dos novos cardeais (27 de Agosto) e, três dias depois, a todo o Colégio Cardinalício (30/08), apoiadas sempre nas leituras da liturgia da Palavra, são, só por si, actos evangelizadores por excelência. Apesar de ter que se deslocar em cadeira de rodas e ter de presidir quase sempre sentado, Francisco não se mostra acabrunhado pelas dificuldades e, pelo contrário, convida os cardeais e toda a Igreja a viver no dúplice assombro ou espanto: o de Paulo, perante o desígnio de salvação de Deus, narrado na carta aos Efésios 1, 3-14; e o dos discípulos, no encontro com Jesus ressuscitado que os envia em missão (Cf. Mt 28, 16-20).
No hino paulino, as expressões: «em Cristo» e «n’Ele» são a base que sustenta todas as fases da história da salvação: «Em Cristo, fomos abençoados antes da criação do mundo; n’Ele fomos chamados; n’Ele fomos redimidos; n’Ele, toda a criatura é reconduzida à unidade. E todos, vizinhos e afastados, primeiros e últimos, estamos destinados, graças à acção do Espírito Santo, para louvor da glória de Deus».
«Este louvor vive do espanto, estupefação, maravilhamento (3 palavras que utilizo para traduzir o italiano ‘stupore’ ou ‘stupirci’ que utiliza 18 vezes nesta homilia!) e é preservado do risco de cair na habituação até que atinge a maravilha e alimenta-se com esta atitude fundamental do coração e do espírito: a estupefação, o maravilhamento». Francisco continua, interrogando todos: cardeais, bispos, sacerdotes, consagrados e consagradas, povo de Deus: «como vai o teu maravilhamento? Tu sentes maravilhamento, por vezes? Ou esqueceste que coisa significa?»
Este clima de estupefação e maravilhamento é o que encontramos quando penetramos no hino paulino. Saboreando o evangelho de Mt 28, 16-20, encontramos um novo maravilhamento. O que nos encanta, desta vez, não é o plano da salvação em si mesmo, mas o facto ainda mais surpreendente de Deus nos envolver no seu desígnio: é a realidade da missão dos apóstolos com Cristo ressuscitado: «ide… fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo … eu estou convosco todos os dias até ao fim dos tempos». «Estas palavras do Ressuscitado têm ainda hoje a força de fazer vibrar os nossos corações. Não deixa de nos maravilhar a insondável decisão divina de evangelizar o mundo a partir daquele miserável grupo de discípulos que, como anota o evangelista, ainda tinham dúvidas».
Para Francisco, este maravilhamento é um caminho de salvação! É mantendo-o vivo que os cardeais e toda a Igreja poderão fugir da tentação de se julgarem importantes, ‘eminentes’, porque «o Mentiroso de sempre procura mundanizar os seguidores de Cristo e torna-los inócuos, sem força e sem esperança. A mundanidade impede de ver o olhar de Jesus que nos chama pelo nosso nome e nos envia. Este é o caminho da mundanidade espiritual».
E face a tanto desencanto com a Igreja e na Igreja, como o mostram bastantes das sínteses da caminhada sinodal, Francisco insiste: «A Palavra de Deus que hoje escutamos desperta em nós o assombro/maravilhamento de estar na Igreja, o encanto de ser Igreja! Voltemos a este maravilhamento inicial, batismal! E é isto que torna atraente a comunidade dos crentes, primeiro para si mesmos e, depois, para todos: o dúplice mistério de ser abençoados em Cristo e de ir com Cristo para o mundo. E tal maravilhamento/encanto não diminui em nós com o passar dos anos, não decresce com o aumento das nossas responsabilidades na Igreja. Graças a Deus, não. Reforça-se e aprofunda-se.» Foi São Paulo VI, na encíclica Ecclesiam suam, que soube despertar-nos e incutir-nos este amor pela Igreja, um amor que é, antes de mais, reconhecimento, maravilha agradecida pelo seu mistério e por nos oferecer o dom de nela sermos admitidos. Mas não só. É também o dom de sermos co-envolvidos, participantes, mais ainda, corresponsáveis. Dizia São Paulo VI: «é a hora em que a Igreja deve aprofundar o conhecimento de si mesma […] a própria origem, a própria missão […] o plano providencial do mistério escondido desde sempre em Deus… a fim de que seja manifestado … por meio da Igreja» (Ef 3, 9-10).
Um ministro da Igreja é alguém «que sabe maravilhar-se diante do desígnio de Deus e que com este espírito ama apaixonadamente a Igreja, pronto a servir a sua missão onde e como quer o Espírito Santo. Era assim o apóstolo Paulo, cujo fulgor apostólico era sempre acompanhado, melhor, precedido do dar graças cheio de admiração e de espanto. É isto talvez a medida, o termómetro da nossa vida espiritual».
Francisco termina com uma pergunta a todos nós: «Como está a tua capacidade de assombro/maravilhamento? Ou será que te habituaste tanto que a perdeste? És capaz ainda de te maravilhar?». O êxito da caminhada sinodal está na capacidade de responder positivamente e com verdade a esta pergunta.
Autor: Carlos Nuno Vaz
Papa Francisco convida ao maravilhamento na missão evangelizadora

DM
3 setembro 2022