Já numa fase de deconfinamento, após o coronavírus ter tomado de assalto o planeta – são já 7,8 milhões de casos infectados (3,73 milhões recuperados), 431 mil mortes –, impõem-se algumas asseverações:
1. Desde logo, relevar uma série de questionamentos existenciais, com incidência em nossas vidas, da grave crise ainda longe do fim, mas que levou à redescoberta de algo essencial, preterido em tempos de normalidade. Sendo a reflexão existencial o que é próprio do humano, existir não é simplesmente viver; a existência, como mostra a etimologia latina (ex-sistere, “sair de”), é essa capacidade que o ser humano tem de se posicionar como sujeito e objecto analítico de si mesmo; quer dizer, de indivíduos susceptíveis de se orientarem de acordo com a sua liberdade. Reflectir existencialmente é, portanto, questionar o significado primacial da presença no mundo e agir em consequência, o que implica uma orientação teorética e prática no mundo onde vivemos.
2. Mas a liberdade não é o único existencial humano; igualmente preponderam a vulnerabilidade e a colectividade (e não colectivismo); após décadas de predomínio do frenesim tecnicista e da ideologia individualista, a experiência da covid-19 tornou patente a constatação que era ofuscada: nascemos e permanecemos juntos, mas vulneráveis.
A tecnocracia, junta com o individualismo, pretere os existenciais acima referidos, tendendo ao tecno-consumismo galopante. Então, liberdade, vulnerabilidade e colectividade são vistos como obstáculos ao potencial humano e, mais precisamente, ao potencial inabarcável do indivíduo. Um exemplo paroxístico dessa tendência é o discurso de muitos trans-humanistas que consideram a velhice como uma doença superável ou o corpo como uma prisão para a mente, atribuindo à tecnologia e robotização generalizada um papel prevalecente para nos libertarmos da condição humana, pois esta é demasiado humana. A vulnerabilidade, patente na infância e na senectude, mas também no decurso de nossas vidas, é algo que pretende ocultar-se como dimensão vergonhosa do humano, e que se pretende negar. Quanto à colectividade, mesmo que seja absolutamente essencial no nosso quotidiano, a posição neoliberal subvaloriza-a, a ponto de quase a preterir.
3. A pandemia da covid-19 trouxe ao de cima uma fenomenologia do “nós”. A supremacia do individualismo resultara em egoísmo ganancioso, que desvaloriza a reflexividade, pela qual apreendemos a nossa vocação universal, de que o egoísmo individualista é a antítese completa. Ora, no reino do supérfluo, o essencial é dispensável. Como escrevíamos, a experiência inolvidável do confinamento e da covid-19 fez valorizar o conjunto alargado de pessoas que lutam, sofrem e se colocam em perigo para cuidar da nossa vida e saúde – também numa vivência profunda de vulnerabilidade e de colectividade; aliás, tal experiência pôs a claro mesteres que se julgavam menores, afinal também fulcrais nas nossas vidas.
Por isso, urge a expansão dos serviços públicos – saúde, ensino, habitação, ciência, etc. Faz falta que o Estado crie emprego para que tais serviços se desenvolvam: esta uma das lições da pandemia! Importa ainda uma reconversão industrial e energética para proteger-nos de crises futuras; é incompreensível como o Ocidente (Europa, Estados Unidos, etc.) se tornaram dependentes da China até no fabrico de meras máscaras, fatos sanitários, ventiladores, etc., pelo lucro desenfreado e não por racionalidade económica.
4. Os argumentos apregoados da parte dos neoliberais, fautores do capitalismo financeiro, é que importa terminar já com normas de confinamiento (segundo muitos, nem deveriam ter-se iniciado), já que estas ameaçam colapsar a economia. Segundo eles, tais mortes são um custo relativamente baixo e suportável (a maioria da população não é afectada), aliás um custo necessário para salvar a economia. Como disse o vice-governador do Estado de Texas, Dan Patrick, em entrevista à Fox News, os avós do país deveriam aceitar a sua morte para salvar a economia para os seus netos; apesar de estarem conscientes que tais medidas são necessárias para controlar a propagação do vírus, alegam que a maioria das pessoas contagiadas sobrevivem, e só entre os anciãos a mortalidade é elevada. Como resumia o estulto presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, "não podemos permitir que a cura seja pior que o problema".
Para tais vozes, o mais importante é salvar a economia. Todavia, que economia? Se a peste negra (século XIV) pôs fim ao feudalismo – um terrível regime de escravidão dos servos da gleba –, se a pneumónica, há cem anos, contribuiu para instaurar estados de bem-estar com a prevalência dos serviços públicos, é mister esperar que da actual pandemia resulte ao menos o definhamento do capitalismo financeiro, que, ao invés do capitalismo agro-industrial ou comercial, não é produtivo. O desafio da futura economia é pôr o social no centro da vida socioeconómica.
O autor não escreve segundo o denominado acordo ortográfico
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
Pandemia e vulnerabilidade humana

DM
17 junho 2020