Tal pode-se dar, por exemplo, com um balconista novato. Aqueles que têm a virtude teologal da caridade encaram estes desafios à nossa fortaleza com maior facilidade. Os que não a têm agridem quando deveriam estimular, gritam quando deveriam calar ou irritam-se quando deveriam compadecer-se.
Como são admiráveis as pessoas humildes, não é mesmo? São um verdadeiro perfume celestial que abranda o mau cheiro da vaidade, este verdadeiro gás sulfídrico do convívio. Como são extraordinárias as pessoas caridosas! São luz na escuridão da crueldade, no breu do egoísmo, são brisa em deserto inclemente. E como são cada vez mais raros os humildes! E agulhas no palheiro os caridosos! Como me dizia Seu Teobaldo, há muitos beneméritos entre nós que não chegam às alturas da caridade porque promovem tudo que fazem, divulgam com estardalhaço e trombetas suas boas ações e depois se comprazem com a admiração dos que os cercam.
Há muitos momentos e processos históricos dos quais ausentam-se por inteiro a humildade e a caridade. Casos exemplares são as guerras e suas versões internas, as revoluções. Quando a água represada dos reservatórios da paciência popular leva por diante tudo que encontra pela frente tão logo rompem-se as barragens da repressão policial, da confiança e do controle social. Não foi diferente nas duas mais famosas revoluções da história, a francesa e a russa. Ambas foram precedidas pelo esgotamento de modelos aristocráticos cujo apogeu ficara bem atrás. Foram o culminar de uma nobreza fraca e decadente.
Nicolau II era bom e fraco, dominado pela esposa alemã Alexandra e dispersivo por conta da hemofilia de seu filho Alexei. A preocupação dos pais com este menino, herdeiro do trono, era tamanha que acabaram nas mãos do místico e devasso Rasputin, um sujeito que só de ver dá vontade de sair correndo.
Na França, Luís XVI era ainda mais fraco e dominado pelos caprichos de Maria Antonieta, a austríaca que brincando de ser rainha abusou da sorte. Ler uma de suas biografias, como a escrita por Stephan Zweig, com a qual ora me deleito, é lenta tortura: ela faz tudo errado e só tem em mente divertir-se. Sua mãe, a imperatriz Maria Teresa, em momento algum deixa de repreendê-la, sem sucesso. Seus disparates e frivolidade são de tal ordem que o leitor tem vontade de sacudi-la se tal fosse possível. Maria Antonieta abusa do direito de errar e se isola, tanto da aristocracia quanto do povo, porque não tinha interesse em nada além de si mesma.
Passados mais de duzentos anos da revolução, Paris ainda é uma cidade com partes históricas simplesmente extraordinárias. Entre o Jardim das Tulherias e a Champs-Elysées há uma praça denominada Place de la Concorde.
Andar pela região, com o museu do Louvre à esquerda, entrar na Concorde, ter pela frente a Assembléia Nacional francesa e entrar à direita na Champs-Elysées, com o seu Arco do Triunfo ao fundo, é uma experiência que ninguém esquece. Pois bem, a Place de la Concorde foi no final do século XVIII rebatizada como Place de la Revolution.
A estátua equestre de Luís XV foi apeada de sua base e a guilhotina montou acampamento.
Incansável, sua lâmina caiu sobre Luís XVI e Maria Antonieta, apenas para citar dois dos mais de mil degolados naquela área durante o período do terror revolucionário. Quem passa por ali e desconhece os detalhes da tão decantada revolução não faz a menor ideia de que naquele que é um dos pontos urbanísticos seguramente mais bonitos do mundo os homens tenham protagonizado tamanhos horrores. A grande maioria dos turistas que por lá andam, trôpegos de contentamento, extasiados pela beleza do conjunto, sequer sonham que numa determinada época a Place de la Concorde possa ter abrigado um circo de tamanha violência.
Como, em nome da razão e da liberdade, pode o homem promover tamanha crueldade? Não há bandeira que justifique. Aliás, comprovando que a violência gera violência, vários dos líderes revolucionários tiveram eles próprios a cabeça decepada, como Danton e Robespierre. Pobres humanos, só nos fazem concluir: como Deus, Todo Poderoso, é paciente com a humanidade.
(O autor escreve em Português do Brasil)
Autor: J. B. Teixeira