Existisse uma espécie de Google católico e talvez a expressão “igreja doméstica” figurasse no ranking das mais pesquisadas ao longo do ano 2020. Com a suspensão do culto comunitário e boa parte das actividades pastorais, foi-se introduzindo esta expressão no vocabulário de muitas famílias, a qual permanecia, até então, desconhecida ou apenas ouvida marginalmente.
Em Janeiro deste ano, a Conferência Episcopal Portuguesa afirmou, numa nota sobre os desafios pastorais da pandemia, que a Covid-19 “deverá ter-nos aberto os olhos para descortinar um outro modo de ser Igreja, feito não só de liturgia e de oração, mas de vida quotidiana”. Com isto não se pretende dizer que a Igreja doméstica é uma realidade paralela à comunidade cristã, nem tão pouco um substituto temporário – uma alternativa – à espera de melhores dias. D. Jorge Ortiga lembrava numa homilia, em inícios da pandemia, que a Igreja nasceu a partir das famílias e que seria necessário “regressar a esses tempos”. Referia-se, neste caso, ao dado histórico da domus ecclesia, ainda que com um sentido diferente.
Para melhor entender esta realidade, sugiro a leitura do livro “Os espaços litúrgicos dos primeiros Cristãos”, de Isidro Lamelas. Retiro apenas algumas notas. Lamelas defende que os primeiros cristãos foram progressivamente abandonando o templo e, desde o século II, deixaram mesmo de frequentar os espaços de culto judaicos. Como alternativa, para além das casas privadas já usadas para o culto, algumas comunidades começaram a adaptar “casas” exclusivamente para este fim.
Tais casas ficaram conhecidas por domus ecclesiae (casa da Igreja) ou igrejas domésticas. Sem se confundirem com uma determinada família (domus familiae), estas eram um lugar semipúblico de referência e de unidade para a Igreja local. O que aí se fazia concretamente? Reuniam-se para a oração, para a escuta da Palavra, para participar nos sacramentos, praticar a fraternidade e a caridade, assim como pregar e fazer catequese. Em síntese, é o que de mais próximo temos da actual paróquia. Tanto assim é que, logo que possível – sobretudo após a Paz de Constantino –, a domus ecclesiae foi dando lugar a espaços construídos de raiz, com uma arquitectura apropriada, para os fins necessários à comunidade crente.
A primeira conclusão a retirar é que não é adequada a analogia entre as igrejas domésticas e a domus ecclesiae. Estaríamos, neste caso, a sugerir a hipótese de transformar as casas das famílias num espaço de culto. Sem querer ser injusto ou desagradável, creio ser errada a imagem de uma casa “simulacro de igreja”, com a família reunida à volta de uma mesa ornamentada ao estilo de altar a assistir à eucaristia pelo portátil. Igreja doméstica não é isso.
O Catecismo da Igreja Católica lança a primeira base sólida para um melhor entendimento desta realidade. Lê-se no nr. 1657 que “o lar é a primeira escola de vida cristã e uma «escola de enriquecimento humano»”. Regressando ao texto da CEP, é “um outro modo de ser Igreja, feito não só de liturgia e de oração, mas de vida quotidiana”. Por outras palavras, compete aos pais aprenderem o abecedário de Deus, os elementos nucleares do ser cristão, para ensinarem aos seus filhos a gramática da fé. Mas não uma aprendizagem intelectual, abstracta, onde fé não toca a vida concreta.
É inspirador, neste aspecto, o discurso de Christoph Theobald sobre o cristianismo como um estilo, ou seja, a opção de assumir a fé cristã como um modo de habitar o mundo ou, se preferirmos, uma pluralidade de mundos culturais e até religiosos, segundo o itinerário de Jesus de Nazaré. Assim, a igreja doméstica pode adquirir um novo sentido: desenvolver, em família, uma literacia espiritual que ajude a compreender que a fé é vida e que toca todas as suas dimensões; que a fé gera cultura, mas que a própria fé também tem uma cultura que deve ser aprofundada. A igreja doméstica é o tempo e o espaço que Deus nos concede para, em família, aprendermos a ser cristãos.Autor: Pe. Tiago Freitas