Tinha 12 ou 13 anos. Era o primeiro sábado de Agosto, dia da romaria anual. Do programa constava uma corrida pelas estradas e caminhos da aldeia. Inscrevi-me. Preparei-me durante uma semana. Mal soou o tiro de partida, fiquei na cauda do pelotão. Quando cheguei ao fim, juntamente com um colega de calvário, já nem meta havia. As medalhas tinham sido distribuídas e os espectadores passado à parte seguinte do programa das grandiosas festividades.
Vem isto a propósito da participação eleitoral dos Portugueses residentes no estrangeiro. Ainda nem tinham sido contabilizados os votos além-fronteira e já o Presidente da República recebia os partidos políticos em Belém e o Primeiro-Ministro destilava a composição do novo Governo junto da Comunicação Social. Dificilmente se poderia enviar um sinal de maior desprezo – no melhor dos casos, de total indiferença – à diáspora. Se do Terreiro do Paço não se aperceberam ainda, algo vai mal no reino das elites que nos governam. Se fosse Vila Real, Viana do Castelo ou os Açores caia o Carmo e a Trindade.
A elevada taxa de abstenção que tem caracterizado a participação emigrante não pode servir de bode expiatório, até porque as causas são múltiplas e complexas. Para refrescar a memória, em 1975, nas eleições para a Constituinte, havia 21910 inscritos e 18385 votantes (84% de participação). Desde então, registaram-se os seguintes resultados: 1976 (105709; 91740; 86,7%); 1979 (132273; 88379; 66,8%); 1980 (175577; 108096; 61,5%); 1983 (185539; 83984; 45,2%); 1985 (190818; 57531; 30,1%); 1987 (187581; 49 819; 26,5%); 1991 (187598; 61128; 32,5%); 1995 (192855; 46182; 23,9%); 1999 (182550; 42874; 23,5%); 2002 (162612; 39711; 24,4%); 2005 (146354; 36938; 25,2%); 2009 (167006; 25474; 15,2%); 2011 (195111; 33311; 17,0%); 2015 (242849; 28550; 11,8%) e 2019 (1466754; 158252; 10,8%).
O leitor perdoar-me-á a aridez dos números. Apenas 970 000 votos, em 45 anos. Mas cada um deles foi enviado por alguém que, a centenas ou milhares de quilómetros, se sentia profundamente português. Os milhões de votos que nunca chegaram materializam uma abstenção que perpassa hoje muitas classes sociais, profissões, religiões e nacionalidades. Alguns também simbolizam o repúdio por uma certa condescendência com que são tratados aqueles que um dia saíram do país, não raras vezes porque não encontravam aqui condições para uma vida condigna. Todavia, entre 2010 e 2017, as remessas para Portugal totalizaram a módica quantia de 23 mil milhões de euros (Observatório da Emigração, 2018), uma média de 6000 euros por minuto, segundo as contas do Expresso.
Uma palavra ainda para as condições kafkianas em que tem decorrido o voto emigrante, seja presencial ou por correspondência. Desta vez, o recenseamento automático aumentou significativamente o número de eleitores em 186 países. Como é costume, não foram devidamente acauteladas as condições de tal mudança. Na África do Sul, quase ninguém votou devido à demora dos correios. Por todo o mundo, um conjunto de atrasos, greves, problemas com o porte pago e mais de 142000 boletins devolvidos abalaram o processo. Tive de ler duas vezes o impresso (um boletim de voto, dois envelopes e um texto) para descodificar 31 linhas com indicações diversas. Não é por acaso que se registaram 35331 votos nulos!
No dia em que me “privaram” da meta, passei a desconfiar da máxima de Pierre Coubertin – aliás, pronunciada, pela primeira vez, pelo bispo da Pensilvânia na homilia aos atletas dos Jogos Olímpicos de Londres (1908). “O importante é participar”, soe dizer-se. Verdade seja dita, o importante é respeitar todos os participantes. Bem se pode proclamar que, em termos aritméticos, tudo estava decidido. Ao não esperar pela emigração, Lisboa deu um sinal claro que os votos “deles” não contam para nada.
*Professor da Universidade Católica Portuguesa – Braga
Autor: Manuel Antunes Cunha*
Os votos “deles" não contam

DM
19 outubro 2019