Agora que as folhas do calendário de 2022 se estão quase a esgotar, afigura-se ajustado deambular sobre a trajetória dos últimos doze meses e projetar desejos, ou arriscar algum vaticínio, para o ano que nos espreita.
No plano internacional, a Guerra na Ucrânia capturou o radar noticioso e muitas das preocupações dos portugueses, da generalidade dos europeus e, ainda que com menor pendor, dos muitos cidadãos que se sentem parte do designado mundo Ocidental. O resto do mundo, em particular o designado “Terceiro Mundo”, sentiu os efeitos desta guerra, ainda que muito distante, em particular pela insegurança e escassez alimentar que projetou.
Na Europa, a inusitadamente alta inflação aflige de forma grave os grupos sociais mais pobres. Neste inverno, a escassez e a carestia do gás arrastam ainda problemas de potencial penúria energética em muitos lares da vasta Europa fria. No Portugal mais frio, a Norte e Centro, porventura este constrangimento não se fará sentir muito porque, mesmo com os preços mais baixos do passado, nunca se terá estabelecido o hábito geral de aquecer as habitações durante todo o dia com o gás, quando muito apenas com o recurso à mais barata lenha.
E a lenha, da floresta próxima ou de parques urbanos, é justamente a alternativa que sobra para muitos ucranianos, com as casas esventradas pela artilharia e pelos mísseis russos, sem eletricidade ou oferta de gás. Inquestionavelmente, os ucranianos são as grandes vítimas de uma guerra que, forçosamente, tem de envolver a solidariedade das democracias europeias, não obstante todo o prejuízo e custo, económico e social, que arrasta para as mesmas. Arriscando algum otimismo, deixo o vaticínio – ancorado, naturalmente, também no desejo – de que este conflito se poderá resolver no decurso do ano de 2023. O cansaço do Ocidente, porventura empurrará a Ucrânia para um acordo com a Rússia que, provavelmente, não assegurará, como seria desejável no mundo ideal, a reassunção das fronteiras ucranianas de 2014. Mas este acordo também não pode premiar, senão limitadamente, a sofreguidão do imperialismo russo (o estatuto da Crimeia será o verdadeiro nó górdio), pois se tal sucedesse redundaria numa espécie de convite indireto para a mesma Rússia alargar o passo sobre outros países vizinhos, particularmente as ex-repúblicas soviéticas. A Ucrânia arrisca a exaustão combativa, mas mostra-se também patente que a Rússia evidencia impotência militar (a sua ação é alimentada pelo terror, pelos ataques sobre as estruturas e populações civis) e por isso, não obstante o discurso maximalista que ainda alimenta, também deverá estar interessada numa paz com concessões.
Pelo mundo, neste ano, arrastaram-se outros conflitos violentos, adormecidos ou ainda vivos, desde a Síria ao Iémen, até ao Tigray (Etiópia), mas menos impactantes à escala europeia e global.
No mais distante Afeganistão, o governo taliban volta a enclausurar as mulheres, através de um código de conduta e de indumentária que as deixa desprovidas de elementares direitos humanos. Decisivo, para uma mudança, seria que importantes países de maioria islâmica coagissem os talibãs para uma maior abertura à modernidade. As democracias ocidentais consolidadas, minoritárias à escala mundial, não conseguem, por si só, impor a DUDH (1948) por todas as geografias.
Para o plano estritamente interno, uma nota final. São muitos, demasiados, os “casos e casinhos” que têm assoberbado a estrutura governativa. O curso da governação continua a enfrentar um horizonte difícil, atrás descrito, mas os sucessivos melindres, os escândalos, os rastos de aparente prevaricação envolvendo figuras da equipa governativa minam a sua eficácia, no todo, e a do primeiro-ministro em particular. Provadamente, antes da contratação de novos governantes (difícil, admite-se) é forçoso que os mesmos sejam sujeitos a um cuidado escrutínio prévio, institucionalizado de preferência, esconjurando-se assim a posterior descoberta de “rabos de palha”. Ademais, o último caso, com a ex-secretária de Estado do Tesouro Alexandra Reis, elucida-nos de que num Portugal com muita míngua, e com uma classe média depauperada, ainda há nichos de uma aristocracia sustentada nos impostos dos sofridos portugueses. Mas estes acesos contrastes sociais, que bom era que se dissipassem, irão, com certeza, atravessar os próximos anos, fragilizando a nossa democracia.
Autor: Amadeu J. C. Sousa