Viver a Quaresma, como tempo de reconciliação, de penitência, de renovação e de prática de certas privações corporais e materiais só tem sentido se houver uma correspondência interior que traga benefícios para si e também para o próximo, nomeadamente o mais carenciado. Ir à missa, jejuar e orar, mas passar ao lado do pobre, do marginalizado, do abandonado e do explorado é tudo menos espírito cristão. A vivência evangélica implica, antes da moderação alimentar, a privação dos prazeres hedonistas, da ganância, da avidez mórbida e do enriquecimento ilícito, muitas vezes, obtido à custa da exploração dos mais frágeis.
Jejuar e privar-se de certos sustentos, tantas vezes, guloseimas e alimentos facilmente dispensáveis por quem faz frequentes e lautos repastos até pode ser ofensivo para todos aqueles pobres que jejuam forçadamente, uma vez que nem uma refeição normal conseguem tomar por dia. Jesus Cristo continua a ser chicoteado todos os dias por causa destas situações de injustiça social. O Papa Francisco chama a atenção para estes comportamentos incoerentes, ao afirmar: “Há aqueles que dizem: Eu sou católico, vou sempre à missa. Algumas destas pessoas deviam dizer: A minha vida não é cristã, pago salários baixos, exploro as pessoas, lavo dinheiro (…). Há muitos católicos assim. Se isto é um católico, mais vale ser ateu.”
Muitos órgãos do poder banqueteiam-se diariamente com suculentas refeições (os nossos representantes têm, à sua disposição, uma rica e variada ementa, tanto em pratos principais, como em opíparas sobremesas), enquanto uma grande franja do povo luta arduamente por uma sobrevivência-limite. Há milhões de crianças subnutridas e famintas, a definhar por esse mundo fora. Os governantes deixam-se aprisionar pelo poder e pelo mando, não mostrando grande sensibilidade pela plebe que aguarda eternamente por alguma benesse que lhe pertence como um direito permanente que lhe devia ser concedido e respeitado. Os mandantes alardeiam, nos seus discursos e nas suas intervenções públicas, a defesa dos direitos do povo e da igualdade de oportunidades, mas, na prática, protegem e beneficiam mais os seus amiguinhos, nomeando-os para cargos bem remunerados. A promiscuidade política e social entre pares ainda vigora e dá frutos para os seus apaniguados.
Os sistemas educativos são apresentados como modelos pluralistas, neutrais e laicos, mas, no concreto, lá vêm as circulares e outras diretivas que impõem currículos tendenciosos, anticlericais, antirreligiosos e laicizantes. Apresenta-se o ensino assente na filosofia do respeito, da educação, do civismo, mas, na realidade, vê-se a má educação nos meios familiares, nas escolas e na sociedade, onde campeiam o insulto, a falta de respeito, a ironia, a sátira, o sarcasmo, a mordacidade, a violência (até, em certos casos, gravada e visionada na internet).
O desalinho perante os grandes valores humanos empurrou as sociedades modernas para o desprezo da dignidade humana, desvirtuando profundamente o crescimento harmonioso do homem em todas as suas dimensões. Sejamos coerentes com o que proclamamos e defendemos.
Autor: Artur Gonçalves Fernandes