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Os “nossos” emigrantes

Há uns anos, num 1 de agosto, uma aluna que colocara em estágio num canal de televisão acompanhou uma jornalista ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no âmbito de uma reportagem sobre as férias dos emigrantes. Depois de longos minutos junto à porta das chegadas – tendo já passado algumas dezenas de potenciais candidatos à entrevista –, a estagiária indagou sobre as razões de uma tal indefinição. “Estamos à espera de um representante típico dos nossos emigrantes”, ter-lhe-á respondido a repórter. E, pouco depois, avançou de microfone em riste para o que julgava ser o tal exemplar característico: um homem de meia-idade, bigode farfalhudo e ventre proeminente, trajado a rigor com a camisola da seleção nacional!

Cada vez que ouço falar dos “nossos” emigrantes, interrogo-me se o possessivo traduz uma marca de real afeto ou de nacional paternalismo. Provavelmente um pouco dos dois, embebidos em estereótipos. Não nos passa pela cabeça discorrer sobre os “nossos” minhotos, alentejanos ou açorianos. Esse zelo em exercer uma certa autoridade sobre os compatriotas residentes no estrangeiro perpassa ainda na forma como manejamos termos como “lusodescendentes”, “diáspora” ou “comunidades portuguesas”. Em filigrana, pertencer a tais categorias implicaria fatalmente uma maneira de ser – um “modo português de estar no mundo” como se dizia no Estado Novo –, uma obrigação moral de fidelidade à matriz étnica original.

A imagem do sucesso além-fronteiras e da fidelidade às raízes constituem duas faces do imaginário coletivo sobre os Portugueses a residir no exterior e seus descendentes. O discurso não é novo. Em 1859, o Conde de Tomar já se regozijava com o facto dos seus compatriotas preservarem o espírito português no Brasil. No mesmo sentido se pronunciaram um sem-número de personalidades dos mais variados quadrantes em épocas tão diversas como a Monarquia Constitucional, a República, o Estado Novo ou o pós-25 de Abril. Aliás, desde 1974, as “comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo” tornaram-se – na feliz expressão de Maria Beatriz Rocha-Trindade – o “sucedâneo psicológico” do antigo Império colonial.

Como testemunha a nossa produção literária dos últimos 150 anos, a figura do emigrante constitui um dos marcadores identitários da Nação. Sob o impulso dum discurso que omite as causas do êxodo em favor duma representação romântica, a diáspora foi entronizada embaixadora de Portugal no mundo, independentemente dos laços que, de facto, unem cada um dos seus membros às origens. Na senda dos Descobrimentos, o Português-emigrante evoca a metáfora de navio-nação e de povo-peregrino. Tornou-se um lugar-comum afirmar-se que só sentimos verdadeiramente o que é ser Português depois de ter vivido algum tempo no estrangeiro, como se fizesse parte da identidade nacional experimentar a condição de diáspora.

Contudo, a distância também induz clivagens. Uma parte dos residentes tem por hábito criticar os compatriotas radicados lá fora, sobretudo no que diz respeito a um suposto exibicionismo estival, ao culto do dinheiro, ao domínio da língua e às práticas culturais. Por seu turno, quem vive no exterior sente-se, por vezes, injustiçado: “Somos duas vezes estrangeiros: no país que nos acolhe e no país de origem”. É pouco provável que um meio de comunicação social alguma vez usasse o coletivo “Lisboetas” no título “Emigrantes vieram passar Natal a Mondim de Basto e espalhar covid” a que um diário nacional achou por bem recorrer a 16 de janeiro.

As razões desta incompreensão mútua são profundas, dado que – pela sua natureza – a emigração económica coloca a sociedade de origem face às suas limitações. Há dias, um deputado sugeria que não mais usássemos o vocábulo “emigrante”. Há meses, uma associação organizou um colóquio intitulado “Pare de dizer diáspora”. De facto, os discursos não são neutros. Carregam consigo representações sociais. Não obstante, em vez de querer mudar designações por decreto, melhor seria promovermos uma real educação para a diferença e lutar contra os preconceitos.

*Professor da Universidade Católica Portuguesa – Braga00
Autor: Manuel Antunes da Cunha*
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17 julho 2021