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Os Nativos Digitais ou a Inteligência em Quarto Minguante

Hoje, é com um título algo provocatório que me proponho cativar o leitor para a mensagem desta crónica, incidente nos desafios e riscos que o digital coloca à aprendizagem, assunto sobremaneira importante para estudantes e respetivos pais ou encarregados de educação.

Poderia limitar-me a discorrer sobre o assunto apoiado no meu estatuto privilegiado de observador, atenta a minha condição de professor, ou até evocando a minha experiência enquanto ex-encarregado de educação. Mas não era a mesma coisa, corria o risco de desvelar muito preconceito.

Assim, transmutado o título, no essencial proponho-me convidar o leitor para uma reflexão breve sobre as perturbantes asserções e conclusões, sustentadas em múltiplos estudos referenciados, veiculadas por Michel Desmurget na obra A Fábrica de Cretinos Digitais (publicada em França em 2019 e, entretanto, traduzida entre nós).

Segundo Desmurget, para assegurar o futuro sucesso escolar das crianças e jovens adolescentes importa que os pais lhes imponham restrições penosas, mas eficazes nos seus efeitos, a saber: nada de ecrãs permanentes no quarto (televisão, computador, consola de jogos, telemóvel). Ainda que possam ter acesso temporário a estes equipamentos em horários acertados durante o dia, chegada a hora do descanso noturno a utilização dos mesmos deve ser-lhes vedada (colocando-os fora do seu alcance). A não ser assim, não faltarão os vídeos ou filmes visionados noite dentro, as SMS trocadas pela madrugada, os jogos que se eternizam, tudo isto com prejuízo das horas sono, indispensáveis para propiciarem a atenção e a fruição da memória requeridas nas aulas para uma aprendizagem eficaz.

Estudos comparativos englobando grupos de crianças que beneficiam de mais liberdade na utilização de equipamentos digitais e grupos de controlo com abstinência ou parca utilização dos mesmos, mostram, repetidamente, que estes últimos apresentam maior capacidade na linguagem oral e escrita – requisito fundamental para a progressão na aprendizagem. E o facto de as crianças e jovens de famílias socialmente desfavorecidas serem grandes consumidores de conteúdos digitais e, correlativamente, apresentarem piores resultados escolares será, decerto, mais um indicador do problema digital, avisa Desmurget.

A crescente digitalização da escola (desde a supressão dos manuais impressos até à possibilidade de professores lecionarem à distância para grupos alargados de alunos) propiciará grandes poupanças orçamentais aos governos, por todo o mundo, em prejuízo de uma aprendizagem com qualidade (na presença física de um professor), denuncia este autor. Concedamos, a tempestade que hoje percorre a educação em Portugal decorre, inquestionavelmente, da pretensão governamental de embaratecer o custo da educação pública.

A aprendizagem e a memorização suportada no papel, no livro, é mais eficaz e consolidada do que a apoiada em conteúdos exclusivamente digitais, reitera Desmurget, que atira o exemplo de executivos de topo de grandes corporações digitais ou de empresas de robótica americanas que matriculam os seus filhos em escolas primárias caras, mas sem ecrãs. Pior, o excesso de consumo de produtos digitais, vulgarmente envolvidos por publicidade perniciosa, subliminar ou direta, para além do défice de sono já referido, potencia a obesidade, agravada pelo sedentarismo, a tendência para o consumo tabágico, a assunção de comportamentos violentos, a adoção de comportamentos sexuais de risco, o défice de sociabilidade, em suma.

Respiremos. Obviamente, não podemos ignorar as enormes vantagens decorrentes do bom uso do digital. Não será necessário, decerto, arredar as crianças da fruição absoluta dos desenhos animados até aos 6 anos – quem o conseguiria? – mas até esta idade a exposição crónica aos ecrãs deveria ser proscrita. O acerto estará na dose adequada do consumo digital, como nos dirá o bom senso, facto particularmente importante entre crianças e jovens que não são, por natureza, propensos ao autocontrolo.

Termino. Como não poderia deixar de ser, não faltam estudos alternativos, incensados e apoiados pela indústria do setor, a enfatizar as virtudes do consumo digital alargado. Mas deve merecer a nossa inquietação que Desmurguet, exasperado e mordente, admitamos, tenha sustentado numa entrevista à BBC que os atuais “nativos digitais” são a primeira geração que apresenta um QI inferior ao dos progenitores.


Autor: Amadeu J. C. Sousa
DM

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10 fevereiro 2023