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Os mortos e os vivos

1. Há um fado de Coimbra cuja letra diz assim: Quando eu morrer, rosas brancas Para mim, ninguém as corte. Quem as não teve na vida, De que lhe servem na morte? O tratamento que se dá às pessoas depois de morrerem nem sempre está em consonância com o tratamento que lhes foi dado em vida. Pessoas com quem em vida se não gastava um cêntimo, têm, depois de mortas, o túmulo coberto de flores. Pessoas que nem sempre na vida receberam o tratamento que lhes era devido, têm, uma vez mortas, um funeral pomposo. 2. Pergunto-me muitas vezes: porque é que se espera pela morte para dizer bem das pessoas, para lhes fazer justiça, para ter em relação a elas manifestações de carinho? Porque é que há uma grande preocupação em ir ao funeral de uma pessoa que raras vezes se visitou em vida? Porque é que nos dias 1 e 2 de novembro os cemitérios se enchem de pessoas a recordarem mortos que desprezaram em vida e de que se voltam a esquecer ao longo do ano? Que fé é esta que leva as pessoas ao cemitério e as não conduz à Igreja? Que fé é esta que não olha a despesas para manter flores e velas nas sepulturas e não diz às pessoas que podem sufragar os seus mortos com a esmola, a oração, a Missa? 3. Creio na ressurreição dos mortos e na vida do mundo que há-de vir. Creio que a morte não é o fim, mas unicamente a passagem para um outro lado que a vida tem. Creio que morrer não é acabar, mas passar a viver de uma outra maneira. Recordo o começo de um poema de Fernando Pessoa: «A morte é a curva da estrada/Morrer é só não ser visto». Creio que os homens - os que estão do lado de cá e os que se encontram do lado de lá – se mantêm unidos uns aos outros, são membros do mesmo corpo e se podem e devem entreajudar. Creio que a Igreja a que pertenço se encontra em três situações: de peregrinação, de purificação, de bem-aventurança. Creio que a morte não é uma desgraça nem uma tragédia, mas apenas um saltinho que se dá para o colo do Pai. Creio que morrer, para quem procurou viver em união com Deus, é ir partilhar da felicidade com Ele. Creio que há o viver no tempo e fora do tempo. Mas creio também na obrigação de ajudar os vivos a viverem cada vez melhor. Entendo que a solidariedade entre as pessoas deve manifestar-se já em vida, através da entreajuda e da compreensão. 4. Se é verdade que a felicidade total apenas tem a sua concretização quando estivermos com Deus, não é menos verdade que já neste mundo Deus quer que sejamos felizes, e é imperioso que todos contribuamos para isso. O Reino de Deus já começa neste lado da vida. É palpável, sempre que o relacionamento entre as pessoas é norteado pela verdade, pela justiça, pelo amor, pela paz. Não esqueçamos os mortos. Até por um dever de gratidão. Mas não esperemos pela morte para dizer a cadáveres que lhes queremos bem e que estamos com eles. Não os abandonemos em vida. Não os desprezemos em vida. Não lhes faltemos em vida com o carinho, a amizade, a compreensão, a companhia, as ajudas que podemos e devemos prestar-lhes. Confesso não estar preocupado com ter ou não um lindo enterro, mas é meu firme desejo ter uma vida cada vez melhor. Que Deus me ajude a aceitar as limitações que o evoluir dos anos me traz. E que, enquanto por cá andar, os amigos me não faltem com gestos de compreensão e de carinho.
Autor: Silva Araújo
DM

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4 novembro 2021