Segundo a mitologia grega e romana, no estreito de Messina, que separa a Itália da Sicília, existiam dois seres monstruosos que aniquilavam os navios que atravessavam aquelas águas: Cila e Caríbdis. Os navegantes que logravam escapar a Cila eram exterminados por Caríbdis e os que escapavam a Caríbdis eram tragados por Cila. Graças à sua coragem e à sua astúcia, Ulisses, como narra a Odisseia, conseguiu escapar à voracidade destruidora dos dois monstros marinhos.
Os mitos de Cila e de Caríbdis, que narram o dilema trágico com que se defrontavam os navegantes na travessia do estreito de Messina, iluminam terrificamente a miséria da condição humana: a fuga a um perigo conduz os homens a outro perigo tão ameaçador e destrutivo como o primeiro e a salvação é sempre passageira e por isso mesmo ilusória. A última esperança para romper a teia mortal destes mitos consiste na coragem, na sagacidade e na astúcia de Ulisses.
A luta contra a pandemia do coronavírus tem analogias com os mitos de Cila e Caríbdis. Para evitar e debelar a pandemia, torna-se necessário adoptar e impor severas políticas de confinamento, com múltiplas restrições às liberdades dos indivíduos e dos grupos sociais, com consequências mais ou menos graves na vida quotidiana das pessoas, na organização do trabalho das empresas, nas actividades económicas, etc. Psicológica e sociologicamente, as políticas de confinamento, se afastam ou diminuem muitos efeitos destrutivos da pandemia, a começar pela salvaguarda da vida humana, originam e potenciam factores negativos que abrangem a saúde mental, as relações familiares, as práticas da vida quotidiana, o exercício de liberdades legítimas e juridicamente protegidas, etc. Os fantasmas do desemprego, da pobreza e da fome ameaçam milhões de pessoas em todo o mundo. Os Estados perdem parte considerável das suas receitas e vêem-se obrigados a suportar despesas crescentes com o sistema de saúde e com os programas de apoio social e económico. O confinamento e as restrições de vária ordem que o consubstanciam, impondo o estado de emergência, o estado de calamidade ou outros similares, possibilitam escapar a Cila, mas empurram os homens e as mulheres, os idosos e os jovens, as empresas e as instituições sociais, para a malignidade de Caríbdis.
Os Governos têm sido acusados de adoptarem orientações incoerentes e erráticas relativamente às políticas do confinamento e do desconfinamento, mas tem de se reconhecer que Cila e Caríbdis requerem dinâmicas políticas e sociais não fixistas, adaptáveis às mutações das circunstâncias e dos contextos, podendo mesmo ser indispensável o recurso a medidas ocasionalistas.
Os peritos e os especialistas – epidemiologistas, virologistas, pneumologistas , etc. – devem ser a pedra angular sobre a qual os Governos definem e constroem as suas políticas de confinamento e desconfinamento, mas estas políticas não podem ficar reféns de uma visão técnica que será sempre parcelar. A visão política, por definição, é sempre poliédrica e pluridimensional. A sabedoria astuta de Ulisses levou o herói homérico a evitar Cila sem ser tragado por Caríbdis.
O Autor não escreve segundo as normas do chamado acordo ortográfico.
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Os peritos e os especialistas – epidemiologistas, virologistas, pneumologistas , etc. – devem ser a pedra angular sobre a qual os Governos definem e constroem as suas políticas de confinamento e desconfinamento, mas estas políticas não podem ficar reféns de uma visão técnica que será sempre parcelar.
Autor: Vítor Aguiar e Silva