Até pode estar de pedra e cal – e a democracia exige que seja respeitada a vontade do povo –, mas decerto que já não é, nem será, sal que dê sabor à governação do país. Muitos cidadãos parecem estar desiludidos, mas têm que arcar com as consequências e ter calma. Todos temos que ser responsáveis pelas decisões que tomamos e não só os políticos. E no caso, até estávamos avisados de que seria arriscado apostar no mesmo naipe de cartas. Sem trunfos, como se sabia, não haveria grande expectativa. Certo é que as sondagens nos vão dando conta como, no conjunto, os cidadãos estão a avaliar negativamente o Governo e o Partido Socialista. A adesão ao projecto socialista tem baixado e de que maneira! E Costa deixou de ser sal na relação com o eleitorado e já não escuta as contestações que se fazem na rua. A história há-de registar que, na sua vertigem dissimulada de fazer crer que estava com os portugueses, construiu uma espécie de heterónimos. Todos nos recordamos daquela fase mais antiga em que ameaçou ir-se embora quando o parlamento se propunha validar aos professores o tempo de serviço que o seu partido lhes usurpou. O último dos heterónimos foi evidenciado num palco rodeado de militantes em que proclamou que será primeiro-ministro até 2026, num optimismo bem ensaiado, mas que não convenceu.
Nos dias que correm e que explicam o estado de alma de muitos, o Governo instituiu um jejum nacional severo quando tinha receita bastante para o evitar. Muitos se desinibiram e abriram o coração, dizem agora: “para quê jejuar se já não acreditamos na eventual bondade do programa socialista? Se nada vai mudar, por que insistir no apoio incondicional? A dúvida está a desaparecer: não cumpriu até então, quando os parceiros o obrigavam a cumprir, vai cumprir agora que não tem qualquer tutor? O jejum não nos diz nada, não nos traz nada de bom. Bastou-nos o jejum no tempo da Troika”!
Costa não escreveu qualquer obra literária ainda, que se saiba, mas tem-se expressado. Um político no activo, normalmente fala, nem que seja para justificar as suas asneiras. Só quando se reforma ou deixa o cargo é que começa a escrever. Como tem andado por aí, não há obra ainda, mas há verbo, muito e diverso. Muitas vezes só de encher, como se costuma dizer, mas há narrativa, que não tem sido sempre a mesma, o que faz suportar a tese de que Costa anda a experimentar heterónimos. Diria que desde 2015. Só que, ao contrário dos que ficaram famosos, nos dele as personagens que inventa têm o mesmo nome. Certamente para nos confundir. E neste aspecto foi mais longe do que o poeta que teve a humildade de identificar as personagens que inventou. Para além daquelas outras fases a que aludi acima, tivemos António Costa do “habituem-se”, arrogante, malcriado e que humilha, e mais recentemente, temos o António Costa “pós-sondagem”, cordato, humilde e em estilo “passerelle”, um e outro governantes, nenhum com disposição de implementar reformas estratégicas nas instituições do país e de resolver promessas e questões sociais há muito pendentes.
O primeiro-ministro de Portugal sabe que não tem conseguido ser sal na condução do país. Como alimentou a esperança em muitos de que continuaria a ser inspirador de um futuro risonho e justo para todos, procura agora refúgio para as suas próprias incapacidades. Sobe ao palco e perante a plateia verbaliza que o Governo socialista se manterá até 2026, como se isso, só por si, seja suficiente. O último dos heterónimos de António Costa deve ter sido inspirado certamente no capítulo 58 do Livro de Isaías, pela narrativa em acabar com todo o tipo de arrogância e com toda a espécie de atitudes de superioridade. O empenho demonstrar-se-á, se for genuíno, nas negociações em curso com os professores, os médicos e os enfermeiros, para mencionar apenas as que estão na berra.
Autor: Luís Martins