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OS DIAS DA SEMANA A tralha natalícia

É um muito bem observado diálogo, assaz sintomático, protagonizado por dois homens, aquele que se encontra num memorável cartoon de Miguel inserido há anos na revista dominical do Público. É quase sempre a mesma pessoa que fala. A intervenção vai enunciando sucessivos desígnios: “Ganhar dinheiro”, “casar”, “arranjar uma casa”, “comprar um automóvel”, “depois ganhar mais dinheiro”, “mudar para uma casa maior”, “comprar um automóvel mais caro”, “e ganhar ainda mais dinheiro”, “para poder mudar para uma casa ainda maior”. Depois, surge uma constatação: “A vida não pode ser só isto”. Para este homem que não cessou de falar, “tem que haver mais alguma coisa…” Perante esta dúvida, o outro homem, até agora silencioso, formula uma hipótese: “Já pensou num automóvel ainda mais caro?” Ir possuindo automóveis cada vez mais caros aparenta ser o projecto de vida de muitos. É provável que não os desejassem se não os pudessem exibir para suscitar a inveja de tantos. Mas, de entre estes, é certo que um ou outro correrão a comprar um carro ainda mais caro para se tornarem eles os invejados. A competição não é apenas, evidentemente, com viaturas topo de gama. É a ânsia de suscitar inveja que, de facto, programa a obsolescência de diversos produtos de marcas de luxo. Cada novo modelo de automóvel destrona a cobiça pelo anterior. Um objecto tecnológico torna-se desprezível logo que surge um modelo mais avançado. No período do advento natalício, o frenesi consumista nota-se mais. O dinheiro esbanjado em coisas desnecessárias é mais ostensivo. Em vez de ser uma festa que aponta para a alegria e a liberdade, o Natal parece homenagear a tristeza de uma insaciabilidade cumulada de tralha. Em Felicidade, um dos melhores – e mais discretos – livros publicados este ano, Mary Oliver, uma das mais estimadas autoras contemporâneas dos Estados Unidos da América (morreu em 2019), inclui um poema intitulado “Arrecadação”: “Quando me mudei de uma casa para outra / havia muitas coisas para as quais não tinha / espaço. O que se faz? Aluguei uma / arrecadação. E enchi-a. Anos passaram. / Ocasionalmente, ia lá e espreitava, / mas nada acontecia, nem uma única / pontada no coração. / Ao envelhecer as coisas que valorizava / foram diminuindo, mas eram mais / importantes. Um dia, tirei o cadeado / e chamei o homem do lixo. Levou / tudo. / Senti-me como o pequeno burro quando / o seu fardo lhe é finalmente retirado. Coisas! / Queima-as, queima-as! Faz uma bela / fogueira! Mais espaço no teu coração para o amor, / para as árvores! Para os pássaros que nada / possuem – a razão de poderem voar.” A poesia de Mary Oliver, publicada no passado mês de Agosto pela primeira vez em Portugal pela Flâneur, uma editora e livraria do Porto, faz a apologia do imperecível, o vínculo à natureza e o amor. “Onde está o teu tesouro, aí estará o teu coração” [1], ensinou Aquele cujo nascimento celebraremos – adequadamente se com menos parafernália e mais fraternidade. [1] Mateus 6:21
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
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19 dezembro 2021