A Intendência Geral dos Abastecimentos anunciava no final de Maio de 1947 que as massas alimentícias passavam a estar “em estado de comércio livre”. A informação, que seria publicada no dia 1 de Junho na segunda página do Diário do Minho, dava também conta da suspensão do racionamento de pão cozido de milho, de farinha de milho e de milho de grão. A notícia transmitia ainda que, mesmo assim, conviria que os portugueses não se desfizessem das cadernetas de racionamento, pois, “a todo o momento”, poderia ser necessário retomar o sistema interrompido. Tempos difíceis, esses. A II Guerra Mundial tinha terminado, mas a miséria portuguesa não.
Alguns pretendiam, contudo, afastar a imagem da má sorte, esforçando-se para que os considerassem pelo que não tinham. Para causar inveja ao vizinho que era pobre, o também pobre do lado fritava, de porta aberta, um pedaço de sebo. O ruído e o cheiro emitiam o sinal exterior de riqueza com que um pobre impressionava outro pobre. Importante era a aparência.
Os tempos, em certos aspectos, não mudaram. Os pobres continuam a querer impressionar outros pobres, ainda que a pobreza agora possa ser de outra natureza. Pode-se dispor de muito dinheiro e ser um pobre – não no sentido nobre (e bíblico) de que a pobreza se pode revestir –, mas no sentido de se padecer intensamente de alguma modalidade de penúria. Há ricos miseráveis, como se sabe. Pobres ricos, portanto.
Como em certa ocasião observou o escritor Carlos Tê, é preciso “redefinir a pobreza para não perverter o essencial”. É que, afirma ele, “não ter um iPhone não é ser pobre. Nunca ter entrado numa livraria é”.
Os pobres ricos gostam de impressionar, de se fazerem invejar. E a forma que estes pobres encontram para o fazer é, amiúde, ostentar carros que custam uma quantidade excessiva de dinheiro. Os exemplos de exibicionismo pretensamente invejável são abundantes.
A imprensa diária tem noticiado que a Escola Profissional Amar Terra Verde, em Vila Verde, vai adquirir uma viatura de luxo. A cilindrada e os cavalos pretendidos eram especificados e é provável que acelerem a imaginação de alguns. Era ainda assinalado que o volante terá de ser desportivo e em pele e os tapetes em alcatifa aveludada. Outra imposição dita que os bancos dianteiros sejam aquecidos e tenham um “sistema de massagens” (1), ignorando-se quem exactamente poderá ser massajado. O vendedor do automóvel de luxo terá de ficar com um Porsche Panamera, para desconto no preço final. Os jornais tentaram saber para que é que uma escola profissional – que tem os municípios de Vila Verde, Amares e Terras de Bouro entre os accionistas e recebe fundos da União Europeia (mais de 13,8 milhões de euros entre 2015 e 2018) – deseja um automóvel de luxo. A dúvida não foi esclarecida, mas a compra de um carro topo de gama persegue frequentemente apenas um objectivo, como desde há muito – e bem – explica a psicologia da publicidade.
“Coisa feia, a inveja” dizia, há anos, o slogan publicitário do Peugeot 307. Mas a imagem de um condutor que merece admiração por conduzir um carro cobiçado (e não seria o caso do tal Peugeot) tem sido bastante abalada por determinadas notícias. “Ao volante de um Porsche Panamera furtado, um cadastrado que estava a ser vigiado pela GNR provocou o caos” (2), dizia uma. O título de outra era: “Foge em Porsche depois de tiroteio em Loures” (3). Um terceiro título indicava: “Traficante de droga que tinha escapado da cadeia há quatro anos preso com 100 mil euros” (4), acrescentando-se a seguir que o “fugitivo foi apanhado pela PJ a guiar um Porsche”. As notícias podem multiplicar-se, mas adicione-se apenas a que deu conta da detenção de uma rede criminosa que roubava carros de luxo, como Ferrari, Porsche e BMW, nas ruas de Paris, mudando-lhes depois a cor e falsificando as matrículas, para os revender em Portugal (5).
Quando se olha para uma criatura dentro de um automóvel topo de gama e se vê alguém susceptível de ser admirado por ter sido bem sucedido na vida – segundo o modelo de sucesso que muita publicidade nos oferece – pode-se ser levado a um engano. As marcas, como é óbvio, não têm culpa, mas as coisas são o que são e quem vai ao volante pode ser apenas um receptador, mesmo que involuntário, de bens roubados ou um delinquente com um cadastro mais ou menos extenso. Por vezes, os condutores ou as condutoras podem também ser apenas exibicionistas que se pretendem pendurar no Estado, como era o caso narrado na notícia intitulada: “Advogada do ‘Jet Set’ pede ajuda ao Estado mas conduz Porsche” (6).
As notícias referidas são do Jornal de Notícias (1) de 7 de Dezembro de 2019 e do Correio da Manhã de (2) 13 de Outubro de 2018, (3) 2 de Novembro de 2018, (4) 18 de Outubro de 2019, (5) 13 de Junho de 2019 e (6) 19 de Fevereiro de 2019.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes