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Os abafadores

Muita gente se espantou pelo PCP, pela voz de Jerónimo de Sousa, ter votado contra os projetos de lei sobre a eutanásia. O bispo de Leiria Fátima, sua eminência D. António Marto, afirmou: “a posição do PCP na eutanásia surpreende mas é humanista”. Claro que é um partido humanista na estrita ideia de que o homem é o centro principal de toda a existência.

É um humanismo sem Deus ou, se quisermos, coloca o homem no centro de todas as coisas sem necessidade de interferência divina. Para os que se apressam a tirar paralelismo entre o humanismo cristão e humanismo ateu, aqui fica o alerta e a reflexão. Na discussão parlamentar sobre a legalização da eutanásia, um dos deputados, referiu-se a uma personagem de Miguel Torga em Novos Contos da Montanha, o Alma Grande.

Nesse conto, o Alma Grande tem o nome de abafador; era chamado pelos familiares para esganar os doentes que, estando na hora da morte, demoravam a morrer. No conto, o moribundo chamava-se Isaac. O médico tinha recomendado à sua mulher que lhe fosse encomendando o caixão.

Quando o abafador entrou no quarto, o Isaac gritou-lhe, “não…não… ainda não”. Hesitou o abafador e desistiu. O Isaac “vinte dias depois comia o caldo ao lume como se nada tivesse sido”.

O conto não acaba assim, mas assim fica em suspenso, pela minha parte. Daqui se conclui que Miguel Torga, que era médico de profissão, disse-nos, com a sua sensibilidade de escritor, que a luta pela vida vale a pena, mesmo depois de desenganado pela ciência médica.

Os quatro projectos de legalização da eutanásia, são abafadores como o Alma Grande. As razões para o abafamento pressupõem causas piedosas para com o sujeito e respeito pelo seu livre arbítrio.

Que livre arbítrio há nos dementes, nos catatónicos, nos em coma profunda? Qual a diferença entre a eutanásia e este abafador de Miguel Torga? Também ele matava depois da desistência da ciência; também ele matava com o consentimento de familiares e da própria mulher, também ele matava por consentimento social.

Esta questão de quem determina a hora da morte, é tão assustadora em seus contornos morais e existenciais, que não sei como alguém tem uma convicção tão forte assim, que possa arriscar ser juiz. Juiz ou carrasco? “ser ou não ser”, diria o dramaturgo Shakespear.

Aliviar um sofrimento sem cura é um ato de misericórdia ou um egoísmo de quem não quer sofrer por ver sofrer? Mas ser capaz de chamar um matador para eliminar um familiar em sofrimento, só porque o seu sofrimento é o meu sofrimento, é de um egoísmo sem limite; não pode deixar de acrescentar sentimentos de culpa para quem disser, «desligue a máquina, mate o meu filho». E este debate prosseguirá dentro da próxima legislatura.

Para que o debate tenha o contributo de todos nós, torna-se honesto e sincero e democrático que cada partido diga, em seus programas, se sim se não à legalização da eutanásia, suicídio ou morte assistida. Assim, os votantes, ao escolherem o partido em que vão votar, saberão que estão a dar ou não autorização para a morte legal.

O Alma Grande era um abafador oficial, legalizado pelos usos e costumes daquelas gentes, socialmente aceite como um bem; nós teremos de saber se queremos um abafador legal ou não. “Eis a questão”.

Para esclarecimento duma possível controvérsia: não coloco nesta discussão, sentimentos religiosos, filosóficos, ideológicos, agnósticos ou ateus; nem criacionismo, nem evolucionismo; o meu pensamento emerge puro, límpido e inocente da sensibilidade e respeito que tenho pela vida.

Para mim ela é uma essência e não apenas um percurso. Quebrar o frasco não mata a essência.


Autor: Paulo Fafe
DM

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11 junho 2018