1. Volto a um excerto do texto de Hegel que citei no artigo anterior, para realçar um tema hoje crucial: "(…) os orientais sabiam que apenas um (o déspota) é livre, os gregos e romanos que alguns são livres, ao passo que nós sabemos que todos, de maneira absoluta, ou seja, como humanos, são livres". Se o Ocidente se revê na última asserção, as duas potências dominantes a Oriente – Rússia e China –, na trama dum expansionismo desenfreado, apoiam-se num despotismo impiedoso. Por isso, Philippe Nemo afirma, no início do seu livro “O que é o Ocidente?” (2004), que este pressupõe "o Estado de direito, a democracia, as liberdades intelectuais, a racionalidade crítica, a ciência e uma economia de liberdade fundada na propriedade privada". Então, como salienta Roger-Pol Droit, num livro (2008) com o mesmo título, "mais que uma região, o Ocidente é uma forma de sociedade, um conjunto de crenças e atitudes que moldaram a sua história e sustentaram a sua expansão”. Assim, Ocidente não é apenas a Europa, mas também os Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália, Nova Zelândia, etc.
2. R.-P. Droit prossegue esclarecendo que “Ocidente” é mais "uma representação, isto é, uma ideia que serve para interpretar o que está acontecendo", pois "ninguém jamais o conhecerá em carne e osso, como se encontram pessoas (…)"; porém, "quando se ouvir esta palavra [Ocidente], todos temos algo em mente", e tal conceito sugere essencialmente "um conjunto de valores, morais e civis que parecem essenciais a este modo de vida". E condensa deste modo os traços característicos do Ocidente: (a) universalidade, ou seja, "ser portador de uma mensagem que se dirige ao conjunto dos humanos", (b) uma atracção pela novidade (vê-se na moda, que muda a cada estação), visível sobretudo, e cada vez mais, nas versões cada vez mais sofisticadas de artefactos tecnológicos; (c) e o lugar importante atribuído ao indivíduo por relação ao grupo (por ex., a liberdade de expressão); não são tanto as tradições que ditam o que é ou não permitido: no Ocidente, é da razão que decorre tal criteriologia.
A dualidade Ocidente-Oriente voltou agora a tema muito falado e debatido, com a devastadora invasão da Ucrânia, pela Rússia, cujo presidente Putin, e seus corifeus, em cada dia que passa, vituperam cada vez mais o Ocidente, que procuram denegrir (desde as liberdades civis e políticas, aos direitos humanos que o Ocidente incorporou nos textos constitucionais), comparando-se, em contraponto, ao czar Pedro o Grande, relacionando até o passado imperial da Rússia com a actual invasão na Ucrânia; recorde-se que esse czar do Império Russo travou também a Grande Guerra do Norte por 21 anos, apropriando-se de uma faixa do Báltico.
3. A invasão da Ucrânia alterou tão radicalmente a arquitectura de segurança na Europa, estabelecida desde a Guerra Fria, que a Finlândia e a Suécia levaram apenas dois meses a decidir pôr fim a décadas, ou séculos, de neutralidade. Se Helsínquia teve de aceitar o estatuto de neutralidade após a II Guerra, por imposição de Moscovo, Estocolmo era neutral há mais de 200 anos; e, se antes desta guerra, apenas 21% da população da Finlândia queria entrar na NATO, depois de Fevereiro, o número subiu em flecha para 76%, vindo a aumentar.
Ora, a política de não-alinhamento militar parecia uma opção inabalável para os dois países nórdicos, só até à invasão da Ucrânia; após 24 de Fevereiro, todos as nações próximas da Rússia, mais ainda as que fazem fronteira com ela, temem a guerra, ansiando por estarem abrangidos pelo artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte (1949), que estipula, para as partes contraentes, que "um ataque armado contra uma ou várias delas será considerado um ataque a todas", conferindo assim uma garantia de segurança colectiva.
4. Como salientou Teresa de Sousa em recente artigo no “Público”, sobre “o antiamericanismo, a doença infantil das democracias”, sabemos que "a América é uma grande democracia com imensos defeitos como todas as democracias, (…) que a Rússia e a China são dois países submetidos a regimes ditatoriais. Sabendo tudo isto, teimam em estabelecer uma equivalência entre uma superpotência onde há total liberdade de expressão, total liberdade de associação, total liberdade de imprensa, total liberdade de manifestação, com duas grandes potências onde não existe nenhuma destas liberdades".
O contraste adensa-se porque a invasão infligida pela Rússia é a pior das guerras – uma “guerra de conquista” –, coisa não vista na Europa após a II Guerra Mundial, e condenada pela Carta das Nações Unidas; nesse período, não pode acusar-se o Ocidente, mormente os Estados Unidos, seja qual for a invasão de países soberanos, e por condenável que ela seja, ser seguida de anexação de território. Ao invés, na Europa, onde as tropas russas, ou soviéticas, chegaram, qualquer que fosse o motivo, daí não arredaram mais, até à implosão da União Soviética, que o actual czar do Kremlin quer agora reconquistar.
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha