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Obsessão

A sociedade portuguesa está em estado de neurose. De manhã à noite as televisões só dão notícias de infetados, mortos ou acamados, devido à pandemia coronavírus/covid 19. Eu sei que o medo é, nestes casos, a pedagogia certa; se não houvesse alarme, haveria muitos mais contágios e uma maior disseminação viral. Mesmo assim há quem se atreva a desrespeitar as determinações do governo. São jogadores de roleta. Mas os que por medo ficam em casa, estão em estado de ansiedade; primeiro, quanto aos malefícios do vírus e depois porque se sentem em casa na situação de inutilidade; a inutilidade é um peso morto e um corpo morto pesa mais; entretanto, aqueles a quem colocam as coisas à porta, sentem-se leprosos. As televisões deveriam dar os seus noticiários normais e não estar constantemente a dar programas especiais sobre o assunto. Deveriam guardar esse espaço para distrair e não atemorizar, para divertir e não denegrir, para tornar mais leve e não mais pesado o medo que a sociedade já sente. Há quem lave as mãos de minuto a minuto, já há quem nem as janelas abram com medo que o bichinho entre e o clima doméstico está entre o contido e a explosão. Os mais velhos só monologam, estão a ficar entrevados por proibição de saírem para o seu footing. Conheci um professor que sempre sonhou ser inspetor. Sempre que o encontrava dizia-me, “o diploma já está pronto”, diploma da nomeação, é claro. Esta obsessão pela nomeação era uma espécie de epilepsia da sua alma; no meio da escuridão desta obsessão que lhe nublava o discernimento e se concentrava em ímpetos de ansiedade, migou as forças vitais da normalidade e semeou nele desejos tão fortes que fugiram ao controlo de si mesmo. Voltava a encontrá-lo e dizia-me: “só falta assinar”. Tinha compaixão deste fabricante de ilusões, porque percebia que a mente e o coração iluminavam-lhe um caminho falso. A compaixão é a mais importante e talvez a única lei da existência de toda a humanidade. Todas as suas inquietações, todas as dúvidas, todas as preocupações pareciam apaziguar-se naquela esperança difusa; a sua mente fazia-lhe claro o que era escuro e proporcionava-lhe harmonias onde não havia concertos. Julgo que ele sabia que esses momentos, esses clarões, eram rasgões no céu nublado mas, durante estes instantes, era feliz como uma criança que vê o fogo-de-artifício. Vi-o uma vez acabrunhado, sentado no banco de pedra, olhando o rio Cávado que mais lá em baixo corria preguiçoso. Mas isso é uma doença, disse-lhe, compadecido. Penso que um coração só é grande quando é capaz de sofrer com o outro e com ele compadecer-se; ele continuava a criar na véspera a felicidade do dia que nunca vinha! Ficou-se olhando as águas do rio procurando nele um qualquer sinal ; no rodopiar mais rápido da folha solta, via ele esse sinal. O sofrimento e a esperança eram nele uma completude: “tomar conhecimento da minha nomeação, nesse instante, vale toda a minha vida”, dissera em voz sumida como quem tem medo de que as águas do rio pudessem levar, com o seu barulhar, a magia desses segundos. E os portugueses que estão em “prisão domiciliária” não estão também obcecados pelo dia do pico da pandemia e pelo dia do regresso à normalidade? Não será isto para eles a mesma folha que rodopia mais forte, na corrente do rio do seu pensamento? O elo que liga o estímulo ao estado nervoso, tem de ser quebrado sob pena de entrarmos num estado de espírito de dimensão psíquica. Distraiam-nos, não nos massacrem com este campeonato de quem tem mais infetados ou mais doentes no país.
Autor: Paulo Fafe
DM

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30 março 2020