Os resultados de um conjunto de eleições recentes ocorridas em países europeus, assim como noutras latitudes, têm surpreendido e baralhado o pensamento dominante e fragmentado a tradicional paisagem política.
Os discursos xenófobos proferidos em linguagem ofensiva por políticos que se tornaram peritos em gerir os medos coletivos têm vindo a dar expressão a fundamentalismos de vária ordem: erguer muros que separam os “bons” dos “maus”, assegurar postos de trabalho para os de “dentro” e não para os de “fora”, exacerbar a diferença do “nós” face ao “eles”. Instalada a perplexidade e avançadas as primeiras explicações, importa compreender alguns matizes destes ventos de mudança.
De uma forma simplificada, pode afirmar-se que a teoria política das últimas décadas sofreu substanciais alterações desde que, na Europa continental, se gerou um consenso em torno de uma conceção social-democrata de bem-comum e no mundo anglo-saxónico se desenvolvia a “Teoria da Justiça” de John Rawls.
Embora de matrizes políticas diferentes, ambas eram perpassadas por uma mesma convicção: a de que, para alcançar a paz social, havia que eliminar as desigualdades sociais resultantes de diferenças económicas dos membros de uma mesma sociedade.
Esta ideia de “Justiça” gerava, assim, um consenso alargado. Tal perspetiva começou a mudar nos fins dos anos 80 do século passado, com a sobreposição e a progressiva desregulação da esfera económico-financeira sobre outras realidades da vida coletiva. Perante o exacerbar das injustiças, esta mudança de ótica foi moldando um novo ideal político: em vez da eliminação proactiva das desigualdades, através da luta económica, aplicam-se então os esforços na prevenção da humilhação ou do menosprezo dos cidadãos, materializadas em lutas identitárias.
A categoria central desta nova visão deixou de ser a distribuição equitativade bens, e passou a ser a do respeito pela diferença e peladignidade. Nancy Fraser descreve esta transição como a passagem da ideia deredistribuiçãopara a ideia de reconhecimento.
Esta passagem da ideia de redistribuiçãopara a ideia de reconhecimentofoi protagonizada por dois movimentos e/ou sujeitos coletivos diferentes que, no espaço público, perseguem objetivos distintos e, consequentemente, moldam uma conceção distinta de “justiça”. A justiça entendida como redistribuiçãoconstitui uma luta socioeconómica abraçada por movimentos que têm como base de apoio determinadas ‘classes sociais’ (e.g., sindicatos) e cujo objetivo principal é alcançar uma mais justa redistribuição dos bens através do trabalho, do salário ou do acesso aos recursos.
A justiça entendida como reconhecimentoé de natureza identitária e é corporizada por ‘grupos de estatuto’ (e.g., minorias culturais) que visam o reconhecimento da sua diferença identitária ou que lutam contra uma identidade socialmente negativa (e. g, as derivadas da sexualidade). Pela experiência, sabemos que este recurso ao argumento da “identidade” tem constituído um pretexto socialmente útil, mas perigoso, na vida pública, tendo sido aproveitado de maneira diferente quer pelas ideologias políticas situadas à esquerda quer por aquelas atribuídas à direita.
Nos últimos anos, porém, um novo movimento de pessoas ‘desenraizadas’ de qualquer base social estável surge no espaço público e mediático das nossas sociedades: são os estrangeiros, os migrantes-refugiados, os sem-abrigo, os indocumentados, os desempregados, entre outros. Enquanto que a motivação dos dois primeiros movimentos – isto é, dos que pretendem uma redistribuição económica e dos que lutam por reconhecimento identitário – parte da convicção de que existe um défice de reconhecimento social dos “seus direitos” que os impede de atingirem os objetivos pretendidos, este terceiro tipo de movimento está literalmente excluído de qualquer laço ou vínculo social.
São, na expressão de Emmanuel Renault, os “sem-relação”, ou, diríamos, o “terceiro excluído” do acesso aos bens comuns. Estas pessoas e a sua condição vulnerável vieram pôr em causa as tradicionais conceções de justiça e de cidadania em vigor nas nossas sociedades e pelas quais os dois grupos anteriores lutam. E quando esses “intrusos” são os mais vulneráveis, os pobres e os sem-recursos, instala-se uma rejeição coletiva em forma de mentalidade, a aporofobia.
Se, como sugere Charles Taylor, o reconhecimento dos direitos advém de uma ação comum e de um agente coletivo e não do somatório atomístico de ações individuais, importa perguntar: sem voz, sem recursos e sem identidade coletiva de base social ou cultural estável, como podem estas pessoas exercer a sua cidadania e aceder aos bens económicos e cultuais disponíveis numa sociedade?
Se, historicamente, o reconhecimento da dignidade de alguém advém do facto de exercer a cidadania em conjunto com os outros, como pode um movimento representado por indivíduos desagregados e sem uma base social fixa aceder ao reconhecimento desse valor jurídico-moral? Como torná-los ‘socialmente visíveis’ com vista a afirmar o seu direito a ter direitos e o reconhecimento da dignidade de pessoas? Pensamos, pois, que o princípio do direito ético do estatuto de cada pessoa (a pessoa tem um valor intrínseco) deve preceder o princípio dos direitos políticos.
Esta mudança poderia significar um aumento da sensibilidade moral dos cidadãos: conscientes do valor político da experiência de menosprezo material, social ou cultural dos mais vulneráveis, o reconhecimento sem condições prévias da dignidade de pessoas na sua condição temporária de “desenraizadas” constitui um elemento essencial do novo conceito de justiça.
Autor: José Luís Gonçalves