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O velho

Caminhava devagar, mas direitinho quanto pode ser direita a velha árvore. Sobretudo cinzento, chapéu de tweed e guarda-chuva de chuço. Não podia ser senão um homem do passado. Se fosse do presente não vestia sobretudo mas um kispo enchumaçado, atado como um paio. Parecem todos estar ao fumeiro. Parou e alcancei-o.

Era um velho amigo que mal me viu, sorriu alumiando um rosto como um relâmpago ilumina uma noite escura. Sabes, Paulo, ando aqui para cima e para baixo, olho para um lado e para o outro, e não conheço ninguém. Parece-me estar numa cidade estranha e, como sabes, fui aqui nado e criado. Todos os anos, venho ver a “minha cidade”.

Ainda o ano passado encontrei no café, ali, o António, o Zeca e o Manel, lembras-te deles. Claro que te lembras. Parou e olhou para a Avenida da Liberdade abaixo, estendendo os olhos como quem estende uma passadeira usada. Sabes, sempre me pareceu melhor ter aqui uma alameda em vez destes “canteiros de cemitério”.

A gente vai-se habituando, disse, para dizer alguma coisa. Pois é, mas habituar não é a mesma coisa que amar. A gente habitua-se a uma mulher mas pode, na verdade, não amá-la. Mudando de assunto: um destes dias, lá em Setúbal, onde moro presentemente, uma pessoa, um companheiro de café, perguntou-me pela Bracalândia; já foi um lugar de referência da cidade de Braga. Não tão forte como o S.João ou a Semana Santa, até porque estamos a falar de dimensões diferentes, como é óbvio.

Assim como a Noite Branca que me dizem estar a ganhar adeptos. Mas fizeram mal em acabar com ela, olha para o que eu te digo. As escolas metiam no seu projeto educativo uma visita à Bracalândia e gostavam do que viam e faziam projetos para voltar. Foi uma pena acabar, não te parece? No seu lugar, informei, está lá um laboratório científico ibérico, a Nanotecnologia.

Ali se faz ciência pura. Mas a ciência procura a verdade, não é? E a alegria da pequenada na Bracalândia não conta? Onde se diz que uma coisa inibe a outra? A ciência é séria mas não é casmurra. Braga tem espaço para as duas. A pequenada são a alegria, o chilreio de rouxinóis em alvoradas que se anunciam… calou-se e suspirou. Sabes uma coisa: quando me lembro desta cidade de Braga, lembro-me da pobreza estatuária que por aqui existe.

É pobreza franciscana, meu velho amigo! Disse em tom perentório: a cidade deve uma estátua a D. Diogo de Sousa; por mim colocava-a no campo da Vinha, em vez daquele mamarracho de má memória que certo mau gosto ali deixou colocar. Por exemplo, por que razão não há uma estátua de Gil Vicente em frente ao Theatro Circo, esta jóia arquitetónica de João de Moura Coutinho? Abria-se ali um pequeno largo com uns bancos com encostos para os velhos descansarem as costas e os novos perguntarem quem era Gil Vicente e indagarem por que razão havia ali um largo em sua memória.

Os novos não querem saber destas coisas, questionei. Não querem saber, ou nós não lhes soubemos incutir o gosto por este saber? Eles refugiam-se na tecnologia… escuta, disse-me ele, ou nós não soubemos e não sabemos entabular com eles um diálogo atraente e sedutor que os leve a outros conhecimentos que não os das teclas? Estendeu-me a mão, sem esperar pela minha resposta. Vou cumprimentar a cantora lírica Luísa Todi e o arcádio Bocage nas melhores praças da cidade de Setúbal.

E o velho de sobretudo, chapéu de tweed e guarda-chuva de chuço, foi-se na fugaz imagem de uma aparição. Quem sabe se um dia voltará?


Autor: Paulo Fafe
DM

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8 janeiro 2018