Celebrámos, há quatro dias, a memória litúrgica de S. Jerónimo (30 de setembro). De seu nome completo Eusébio Sofrónio Jerónimo, nasceu em Estridão, entre a Dalmácia e a Panónia (atual Croácia ou Eslovénia), decorria o ano 347. Foi batizado já adulto, em 366, recolhendo-se depois em Aquileia (norte de Itália), onde aprofundou os estudos. Partiu depois para Aleppo (Síria) e aí viveu como eremita estudioso das línguas orientais. Em 382, fixou-se em Roma e colaborou com o Papa Dâmaso. Teria sido este Papa, oriundo Egitânia (atual Idanha-a-Velha) a pedir-lhe que procedesse à revisão da Vetus Latina (uma primeira tradução latina dos textos bíblicos). Depois do ano 390, começou a traduzir a partir do texto hebraico do Antigo Testamento, trabalho que concluiu em 405. Após isso, traduziu também o Novo Testamento do grego para o latim.
Faleceu perto de Belém, a 30 de setembro de 420. Pensa-se que os seus restos mortais, originalmente enterrados em Belém, foram trasladados para a Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Não é de todo certo e são muitos os locais que reivindicam possuir alguma relíquia do padroeiro dos arqueólogos, dos arquivistas, dos estudiosos da Bíblia, dos bibliotecários, das crianças em idade escolar, dos estudantes e dos tradutores. São também muitos os documentos da Igreja que se lhe referem, de que destacamos a Carta Apostólica Scripture Sacrae Affectus (O afeto pela Sagrada Escritura) que o Papa Francisco lhe dedicou, nos mil e seiscentos anos da sua morte, e que aqui apresentámos a 12 de outubro de 2020.
Numa das duas catequeses que lhe dedicou, o Papa Bento XVI afirmou que “a preparação literária e a ampla erudição permitiram que Jerónimo fizesse a revisão e a tradução de muitos textos bíblicos: um precioso trabalho para a língua latina e para a cultura ocidental. Com base nos textos originais em grego e em hebraico e graças ao confronto com versões anteriores, ele realizou a revisão dos quatro Evangelhos em língua latina, depois o Saltério e grande parte do Antigo Testamento. Tendo em conta o original hebraico e grego, dos Setenta, a versão grega clássica do Antigo Testamento que remontava ao tempo pré-cristão, e as precedentes versões latinas, Jerónimo, com a ajuda de outros colaboradores, pôde oferecer uma tradução melhor: ela constitui a chamada ‘Vulgata’, o texto ‘oficial’ da Igreja latina, que foi reconhecido como tal pelo Concílio de Trento e que, depois de recente revisão, permanece o texto ‘oficial’ da Igreja de língua latina”.
Durante mais de um milénio, a edição oficial da Bíblia cristã foi a Vulgata, cuja “influência na cultura ocidental (...) foi incomensurável. Através dos séculos da Idade Média, do Renascimento e da Reforma, a obra monumental de Jerónimo foi o fundamento em que se desenvolveu a cultura cristã ocidental e a própria identidade do continente europeu. A sociedade viveu e respirou ao ritmo dela. A vida medieval girava em torno das catedrais e as catedrais em torno da Bíblia, que impregnava o quotidiano do cidadão na educação, na liturgia, no direito, na arte e na política desse mundo. A Bíblia latina foi durante a Idade Média a principal biblioteca do Ocidente e a base da cultura. (...) Os escritores medievais consideraram a Vulgata o ‘livro de estilo’ e a sua língua um modelo literário. Foi a tradução de importância transcendental para o Humanismo ocidental, também enquanto texto a partir do qual invariavelmente se traduziram pela primeira vez as Sagradas Escrituras para as línguas vernáculas; mesmo as traduções protestantes, que se propunham substituí-la, não se eximiram de a ter em consideração” (Armindo Vaz, Palavra viva, Escritura poderosa..., pp. 233-234).
Talvez não tenhamos consciência disso, mas São Jerónimo teve um papel muito relevante, no seu tempo e ao longo da história: ensinou-nos a amar a Palavra de Deus na Sagrada Escritura, em função do conhecimento de Jesus Cristo. Além disso, ao traduzir os textos para latim, tornou possível a difusão da Escritura no Ocidente, fazendo dela fonte de Palavra normativa para os crentes e instância cultural para todos os povos. É o que basta para considerarmos grande a sua figura e grata a sua memória.
Autor: P. João Alberto Correia