twitter

O Surpreendente Jesus de Marcos – 2

Foi a propósito da passagem referente à cura da hemorroíssa e da filha de Jairo (Mc 5, 23-43) que Secundino Sánchez mais aprofundou o carácter simbólico estruturante da narrativa evangélica de Marcos. Para ele, a hemorroíssa (a mulher que padecia de fluxo de sangue há 12 anos), representa Israel que se extingue, isto é, a sinagoga e tudo o que ela representa. A filhinha de Jairo, chefe da sinagoga, representa a comunidade cristã formada a partir do judaísmo. Jairo que, em hebreu, significa 'Deus resplandece', é incapaz de dar a vida à sua filha, mas Jesus, diante de quem ele se ajoelha, pode dar-lha. E Jesus não a cura apenas: salva-a; ressuscita-a. Ele não pede a Jesus que vá à sinagoga, de que é chefe (arquisinagogo), mas a sua casa, para sugerir que, ao lado da sinagoga, vai nascer a nova comunidade dos que seguem Jesus. (cf. p. 148 do livro já citado). Jairo suplica a Jesus que imponha as mãos sobre sua filha. Mas Jesus faz muito mais: toma-a pela mão, para que se salve e viva. A menina, como resto de Israel, estava quase a extinguir-se. E Jairo pede a Jesus a vida para a sua filha, nitidamente em relação com a ressurreição, porque naquele momento em que suplica a Jesus, a menina não está morta. Jesus não vai libertá-la da doença nem da morte. A vida que vai receber não terá nenhuma vinculação com a anterior. «Será uma realidade de Jesus que se trespassa à menina, ao contacto com as suas mãos». (148) A hemorroíssa e a filha de Jairo vão representar Israel, mas de forma distinta. No caso da hemorroíssa, a narrativa releva quão grave é a sua doença, indicando Marcos, no sentido figurado, que os ritos e purificações prescritos pela lei eram como uma fonte que fazia esvair-se em sangue os fiéis de Israel. São João diria que Israel é um paralítico (Jo, 6, 1 ss), um cego (Jo 9, 1ss) ou um morto (Jo 11, 1ss). Jesus cura-a, mas não a reabilita como esposa. Ela não vai ser o símbolo esponsal da nova comunidade. Este símbolo está reservado para a filha de Jairo a quem Jesus não cura apenas, mas faz renascer. «Deste modo, a comunidade de Jesus procede da Sinagoga (hemorroíssa), mas tendo-se produzido um corte: a morte da menina, a quem Jesus cria de novo (ressuscitando-a). Ela é a figura da comunidade judeo-cristã, surgida do resto de Israel que morreu, e Jesus pôs de pé». Ao dizer à mulher: 'vai em paz', atendendo a outras passagens do mesmo evangelho, a expressão grega 'eis eirênê' designaria a comunidade de Jesus ('o lugar da paz') para a qual Jesus convida a mulher a entrar: «vai para (eis) a paz», ou seja: entra nessa nova comunidade! Para entender mais profundamente todo o alcance da cura da filha de Jairo, temos que ter em conta que a casa de Jesus era a casa da alegria, a casa em que o noivo está presente (Mc, 2, 19). Em contrapartida, a casa do chefe da sinagoga converteu-se em casa de morte, de pranto e de lamento (5, 38). Jesus, ao salvar a menina, está a revelar que a morte não é o definitivo, e que a menina representa o resto de Israel, figura do povo que os rabinos conduziram ao letargo, mas que Jesus vai pôr de pé. Deste ponto de vista, o pranto também é por Israel, que se encontra sem vida. Dele dirá Jesus – (a menina não morreu, está a dormir ) – que está adormecido. E se, até agora, Jesus lhe chamava menina, ao tomá-la pela mão, chama-a 'jovenzinha' (korasion). Jesus rompe com o preceito que proibia tocar um cadáver, toma a mão da menina e diz-lhe em aramaico (talitha Koum(i) que significa literalmente: 'jovenzinha, levanta-te', põe-te a andar'! Isto quer dizer que, para ela, se abriam novos caminhos, pois já era, para a cultura do seu povo, maior de idade. E não esqueçamos que, em Marcos, Jesus se denomina a si mesmo 'o noivo', nada menos que 3 vezes (Mc 2, 18-22). E a ordem de dar de comer à jovem (Mc 5, 44) sugere precisamente que a nova comunidade que acaba de nascer precisa de ser alimentada. Por isso, pouco depois aparece o primeiro milagre da multiplicação dos pães, a sugerir o sacramento da Eucaristia, alimento da nova comunidade. Jesus fará a sua comunidade a partir da comunidade judaica, – comunidade de luto e tristeza, – convertendo-a em comunidade grande, alegre e livre. A menina a quem toma pela mão – isto é, desposa – por-se-á em pé e começará a caminhar ( sentir-se-á livre). Como a comunidade de Jesus, também a casa de Jairo se converterá num espaço de alegria nupcial e de liberdade. (Secundino, O.C, pp. 157-158)
Autor: Carlos Nuno Vaz
DM

DM

17 julho 2021