É este o título principal do livro de Secundino Castro Sánchez, professor de Exegese e Teologia Espiritual na Universidade Pontifícia Comillas de Madrid, datado de 2005.
Já adquiri o livro em 2009, mas só muito recentemente o li com atenção, sobretudo tendo em conta o evangelho proclamado no XIII Domingo (27/06/2021). Depois de no domingo anterior termos escutado que a travessia do lago para ir ao encontro dos pagãos se fez no meio de uma enorme tempestade, com o barco a afundar-se, batido de ondas fortes, mas Jesus 'dormindo' na popa, e acalmando-o ao grito dos discípulos assustados, neste último domingo, dá-se um salto na sequência da narrativa, deixando de lado os versículos 1-20 do capítulo V, sobre a cura do endemoniado. E novamente se narra a travessia do lago para a margem de onde tinha partido. Desta vez sem qualquer referência a condições adversas no percurso. Os três próximos domingos vão apresentar-nos passagens do capítulo VI, 1-6; 7-13 e 30-34, saltando os versículos 14 a 29 que falam do martírio de João Baptista e são lidos noutra circunstância.
Embora Marcos apresente duas multiplicações dos pães, a liturgia escolheu todo o capítulo VI de São João para apresentar nos domingos XVII a XXI o famoso discurso do Pão da Vida. Retoma-se Marcos no XXII Domingo até ao XXXIII, com textos dos capítulos VII a 13, 24-32.
Voltando ao texto do XIII domingo, observa Fernando Armellini, em 'O Banquete da Palavra', ano B, a propósito da mulher com fluxo contínuo de sangue há 12 anos: «Estamos perante uma mulher, sem nome, impura há já doze anos.
O evangelista quer pôr em relevo o número doze, e de facto volta a referi-lo mais à frente quando fala da idade da filha de Jairo: 'Tinha doze anos' (v. 42). Doze é o símbolo do povo de Israel… A impureza da mulher e a ausência de vida na menina indicam, na linguagem simbólica do evangelista, a condição dramática da mulher Israel cujos guias espirituais não só não são capazes de lhe curar as doenças, mas sentem-se repugnados, afastam-se das suas misérias e não favorecem – mas, pelo contrário, obstam – o encontro com Aquele que lhes pode comunicar a salvação». (p. 395)
Armellini não explora mais esta intuição. Por isso me pareceram clarividentes as considerações de Secundino: «A filha de Jairo ressuscitada por Jesus, num relato cheio de colorido e de beleza, com alusões veladas ao Cântico dos Cânticos (5, 40), significa a comunidade cristã surgida do judaísmo. A Hemorroíssa (5, 5-34), que se extingue em sangue, representa a sinagoga traumatizada pelas purificações, que mais não fazem que submergi-la ainda mais na sua doença; por isso os médicos – os enviados do A. T – em vez de a curarem, puseram-na pior. A filha da mulher sirofenícia (7, 24-30) representa a igreja pagã. As duas igrejas cristãs são simbolizadas por duas jovenzinhas. Contrasta esta vitalidade com a da Hemorroíssa, representação da sinagoga, que se apaga». E na preciosa nota (10), esclarece: 'Não se trata, como se pensava na antiguidade, de uma interpretação alegórica, à margem do pensamento de Marcos. Nós pensamos que esse é o sentido que Marcos dá ao facto que narra. Juntamente com o dado histórico, o evangelista descobre um sentido mais profundo, simbólico, que forma parte da trama do livro'.(p.18-19)
Mas acrescenta logo de seguida:«O sentido simbólico não se acha apenas nas personagens; pode encontrar-se também nos lugares, nas situações e nas narrações. Veja-se a dupla multiplicação dos pães com número diferente de pães e de peixes, de comensais e de gestos, a exprimir a realidade das duas igrejas antes mencionadas.. Pode-se dizer que as narrativas de Marcos nos remetem para duas perspectivas: a que denominamos histórica, e a simbólica, que se perspectiva por debaixo dela. Neste sentido, Marcos é dois evangelhos. É difícil encontrar um dado que não deixe transparecer uma realidade simbólica. Ou seja, com dados sobre Jesus, traça-nos um autêntico projecto teológico. E a insistência no presente histórico.. é um modo de fazer chegar a narração a cada discípulo, transcendendo a circunstância histórica». (p. 19)
O espaço disponível não permite mais, por hoje. Procuraremos aprofundar o assunto em próximos textos, pois boa falta faz que possamos olhar para os textos da Escritura e tentar descobrir neles os sentidos que facilmente nos escapam e que, afinal, muito ajudam a tornar mais coerentes os mesmos textos e a saboreá-los em toda a profundidade. A leitura da Palavra não pode ser um pretexto para expormos as nossas ideias sobre o que uma primeira e rápida leitura possa sugerir.
Autor: Carlos Nuno Vaz
O Surpreendente Jesus de Marcos - 1

DM
3 julho 2021