Durante quase três meses, por ausência de culto, os sinos apenas tocaram para chorar os mortos, fazendo-me recordar o romance de Ernest Hemingway, Por quem os sinos dobram. De modo festivo, só tocaram em dia de Páscoa.
Quando, a 30 e 31 de maio, em júbilo, voltaram a chamar para o culto, invadiu-me um misto de sentimentos. Tal como o sino, também eu bamboei entre o sonho e a realidade, a alegria e a tristeza, a saudade que reclama o passado e a esperança que sugere o futuro. Veio-me à mente, de imediato, o poema de Fernando Pessoa:
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Depois disso, dei por mim a refletir sobre o sino (do latim, signum, -i, sinal), no uso e na simbólica. Se as Igrejas Cristãs lhe dão um especial relevo, a Igreja Católica possui até um ritual de bênção para os sinos. A tradição eclesial olha-os com estima e veneração, considerando-os a voz de Deus e da Igreja.
“É costume antigo convocar o povo cristão e adverti-lo dos principais acontecimentos da comunidade local por meio de algum sinal ou som. O toque dos sinos exprime de algum modo os sentimentos do povo de Deus, quando exulta ou chora, quando dá graças ou suplica, quando se reúne e manifesta o mistério da sua unidade” (Celebração das Bênçãos, n.º 1032).
Talvez já não se lhe dê hoje tanta importância, mas não deixa de ser relevante a sua função, nas torres das Igrejas e Capelas. O sino assinala o ritmo do tempo, dando as horas, mas também sugere um outro tempo, para além do cronológico, em que a graça de Deus se faz sentir, nas celebrações (a Escritura chama-lhe “tempo da graça” [Is 49, 8] ou “tempo favorável” [2 Cor 6, 2] e a teologia costuma designá-lo como “tempo kairótico”).
O sino lembra os momentos de oração (Angelus ou Avé-Marias, ao meio dia; Trindades, ao anoitecer) e chama para a Eucaristia e para os principais acontecimentos da vida da comunidade cristã. Recorda-nos que somos uma só família e que nos reunimos para louvar Deus e celebrar a vida.
O sino dá sinais à comunidade: de alegria, nos casamentos e batismos; de tristeza, nos funerais; de perigo, nas catástrofes (incêndios). O toque do sino tem a finalidade de unir a comunidade em torno de acontecimentos que lhe dizem respeito, mesmo que exprimam vivências particulares. Para quem participa, o seu toque é lembrete e chamamento; para quem o não faz, soa a rebate de consciência. Não admira que incomode e perturbe.
É paradoxal que a sociedade esteja a despertar para o valor artístico e cultural do toque dos sinos (é assunto de estudos e concursos) e, por outras razões, haja quem o queira silenciar. Há uma semana atrás, nas redes sociais, houve quem lhe chamasse “poluição sonora”. Tal afirmação é, em meu entender, grave, porque confunde a sua musicalidade com a poluição sonora e porque esquece a tradição e a cultura, a sonoridade e a simbólica dos sinos. Sem o nível de Fernando Pessoa, termino como comecei:
Ó sino da minha aldeia,
Querem fazer-te calar.
Toca! Fico de alma cheia,
Quando te ouço tocar.
Autor: P. João Alberto Correia
Ó sino da minha aldeia...

DM
8 junho 2020