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O Senhor Cónego Fernando Monteiro

Esteve presente em todos os momentos significativos da minha vida. Nos alegres e nos tristes. Nos íntimos e nos partilhados. Esteve, desde há décadas, sempre presente. Contei sempre com ele. No instante em que, nesta quarta-feira, sei da morte do Senhor Cónego Fernando Monteiro foi isto o que imediatamente me ocorreu.

Neste primeiro pensamento, misturam-se gratidão e saudade. Gratidão, pelo afecto dedicado, de uma constância e de uma disponibilidade irrepreensíveis; saudade, pela falta que logo se fez sentir, mesmo sabendo que, embora de outro modo, poderei continuar a contar com a sua companhia.

Lembro, em seguida, detalhadamente, abundantes episódios das muitas horas partilhadas. Lembro também que foi dele o primeiro convite para aqui escrever semanalmente a partir do momento em que – já lá vão quase vinte anos – o Diário do Minhose começou a publicar ao domingo. Não me ocorreu prontamente que é de sua autoria a fotografia que acompanha estes textos, sempre intitulados “Os dias da semana”.

O Senhor Cónego Fernando Monteiro foi um dos amigos mais próximos e mais estimados do meu pai, que continuamente manifestou por ele uma imensa admiração. Somos muitos os que partilhamos essa admiração, fundada, desde logo, no conhecimento concreto da sua intensa intervenção social em favor dos mais vulneráveis.

Desdobrou-se permanentemente de modo incansável para acorrer a todas as situações em que podia ser útil, nunca acatando os conselhos de quem lhe recomendasse que a si próprio concedesse um pequeno período de repouso para se recompor de algum problema de saúde. Nunca parou, nem abrandou.

No seu esforço, soube conjugar caridade e justiça, compreendendo que “a caridade é impossível sem a justiça e a justiça deforma-se sem a caridade”, como escreveu o filósofo Emmanuel Lévinas ou, dito de outro modo, que “a justiça sem caridade é uma ilusão, a caridade sem a justiça é uma impostura”, como observava o ensaísta Jacques Julliard.

Um episódio relatado numa entrevista concedida a Flávia Barbosa, publicada no suplementoIgreja Vivade 12 de Abril do ano passado, é assaz eloquente sobre a sua apurada consciência social e política, forjada antes do 25 de Abril de 1974, em relação às condições de vida dos trabalhadores.

Contou nessa conversa quanto o impressionou o desabafo de algumas mães que se levantavam às cinco da manhã para entrarem na fábrica às seis e não podiam fazer qualquer barulho que acordasse os seus meninos. Confessavam-lhe “que se levantavam em pés de lã e que, se os meninos calhassem de acordar e chorar, era a chorar que ficavam e as mães iam a chorar para o trabalho”.

Quando, em 1973, duas meninas morreram por terem ateado um incêndio em casa, o Senhor Cónego Fernando Monteiro fez o funeral, ficando incomodado por ter escutado quem acusasse a mãe por ser uma desleixada. “A mãe estava a trabalhar numa fábrica e eu perante aquelas afirmações disse no funeral: ‘o culpado destas meninas morrerem sou eu’.

É que não basta estarmos todos os dias aqui e aos domingos numa de ‘Pai-Nosso que estás nos céus’ e ‘somos irmãos’ e as mães a trabalhar em laboração contínua, com as crianças pela rua”. A afirmação causou escândalo, mas não teria ficado satisfeito em apenas “reunir uma comunidade e rezar”, disse o entrevistado, acrescentando uma questão: “E depois no concreto?” O labor concreto pelo bem comum – pelo bem de cada um – foi o que o mobilizou.

“E depois no concreto?” Compreendo, nesta quarta-feira, que foi a esta pergunta que o Senhor Cónego Fernando Monteiro se empenhou sempre em dar a boa resposta.


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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20 janeiro 2019