Anteontem à noite, assisti e participei, com entusiasmo, na apresentação pública do documentário sobre o rio Este, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Um projeto da Malad’arte, inserido no projeto municipal Olh’Ó Teatro, a merecer algumas notas de reflexão sobre a nossa capacidade coletiva de reinventar os espaços a partir da leitura da nossa memória individual. Não se tratou apenas de registar as vozes e ressuscitar as imagens guardadas no quotidiano dos que nele e dele fizeram parte. Foi muito mais do que isso e projetos como aquele que foi organizado pela Companhia bracarense remete-nos para a necessidade de olharmos para a história de uma cidade, de um território, de uma forma integrada e depositar, no futuro, as almas da gente que ao longo de múltiplas estórias, ajudaram a construir a nossa identidade. Em 45 minutos, Tiago Fernandes e a equipa que dirigiu foram capazes de me transportar para o universo simbiótico que une as margens, as gentes carregadas de prazido e os feitos e efeitos que o rio ainda hoje tem sobre nós, na sua humilde coabitação com os homens e mulheres. O trabalho é um testemunho que devemos honrar e guardar como fiéis depositários das suas múltiplas concordâncias e contradições, mas sobretudo, deve ter o efeito de multiplicação para que finalmente Braga olhe para trás e redescubra a sua história coletiva a partir de espaços, sensações e factos que tanta falta faz a uma cidade que quer ser Capital Europeia da Cultura. Nesta viagem sibilante, onde todos os sentidos são chamados a pronunciarem-se, percorremos o rio a partir da sua nascente e dela se percebe como estamos longe de entender o seu efeito notável sobre a vida, tantas vezes trágica, tantas vezes produtora da sobrevivência de quem a ela se agarrou para amarrar as custas agres do quotidiano.
Estava a caminho da Biblioteca a pensar como seria o filme, como se teria encaixado a vontade de fazer e o seu resultado final, sensorial, portanto, para sobreviver à crítica de quem nada faz, e logo julga. Cheguei ao fim com a impressão de que, mais do que pertencer àquela história, a minha obrigação é exultar a magia do trabalho, da (re)descoberta e pese essa sensação de tudo puder ser caduco no lavrar das vontades públicas, fica a certeza perene que esta história, este rio a que pertencemos, espera por nós todos os dias; pedindo apenas que lhe demos um rosto humano. Caro Tiago: ao escrever este texto encontro-me com a meninice dos dias e foi tão bom que repetiria vezes sem conta novas sensações trazidas pela tua sensibilidade e pelas imagens poéticas dos textos do José Miguel Braga. Foi por isso e por tudo o que tens dado ao teatro, ao cinema, que te deixo aqui registadas as palavras escritas à luz de um isqueiro, esperando pela aurora dos dias do Rio: São sons/ são margens/ histórias inacabadas. Uma imagem aqui/ outra ali/ são passadas leves e muitos encantos. São pequenas histórias que enchem a alma e a imaginação. Estão a Norte da emoção dos homens/ a Sul da tua ambição/a Oeste da Inocência/ a Este da nossa perdição. Desta memória que lavra no rio repousa a história de uma cidade.
Ao perder-me por encantos esmorecidos pelo tempo, ao desafiar a minha memória para me encontrar com a coragem das lavradeiras, as mãos áridas que transformavam o milho na velha arquitetura dos moinhos, as linhas de pesca lançadas pela ponta da esperança, as inúmeras brincadeiras e as demais folias que nos tombavam sobre as suas margens em dia de S. João, nada mais posso pedir que repitas e por muito tempo, esta viagem por outros rios do nosso passado, cumprindo, assim, a função nobre e notável de um pregador da arte. Podes e deves continuar a trilhar o caminho com a força e a vontade que nunca caduca e sempre espreita a cada dia que passa. Braga precisa de se reencontrar rapidamente com o seu passado que não é apenas o espelho da grandeza romana; é muito mais do que o nosso imaginário pode alcançar e dessa premissa, espero, resulte um Museu da Cidade que reflita tempos e espaços que povoam múltiplas gerações de homens e mulheres que a ajudaram a construir. Espero encontrar-te de novo por aí, a ti e a toda a equipa que parou o seu tempo para nos dar a nós o tempo perdido pelo esquecimento. A Malad’arte merece pelo que tem feito, sem quase nada pedir em troca, que honremos o seu trabalho, não deixando de ouvir, de ler, de ver como jovens artistas podem com pouco fazer tanto: Silêncio! Ação. Vamos filmar outra vez! Que assim seja amigo Tiago.
Autor: Paulo Sousa