Maio é um mês propício a visões singulares. Depois de algumas páginas iniciais nos darem a conhecer quase todas as personagens principais – os irmãos Melvill, Samuel e Sébastian, tratados por Sam e Sib; a sobrinha, Helena Campbell, Miss Campbell; e um seu pretendente, Aristobulus Ursiclos –, o cenário da acção desloca-se da cidade para o campo, para uma zona pacata a três milhas do pequeno aglomerado de Helensburgh, na Escócia, na costa norte do estuário de Clyde e na costa leste da entrada do lago Gairloch. Estamos no mês de Maio. E o que ao romance acima de tudo parece importar é a vontade de usufruir de um instante muito breve em que é possível ver um fenómeno óptico que poucas vezes surge no horizonte, um raríssimo raio verde. A sua obstinada busca é o que nos relata Jules Verne em O raio verde*.
Inicialmente publicado em folhetim no diário francês Le Temps, entre 17 de Maio e 23 de Junho de 1882, O raio verdeé também o título de um filme homónimo que o cineasta Éric Rohmer realizou cerca de cem anos depois, em 1986. Entre um e outro, houve ainda O raio verde, de Marcel Duchamp, obra apresentada em 1947, em Paris, na Exposição Internacional do Surrealismo. Para a lista não ficar muito incompleta, deve referir-se outro raio verde que, em cada equinócio, durante cerca de quinze minutos, aparece na catedral de Notre-Dame de Estrasburgo, incidindo num dos filhos de Jacob e, sobretudo, no Cristo na cruz, esculpido num púlpito do séc. XV**.
Miss Campbell, no livro, tem o grande desejo de avistar o fenómeno óptico atmosférico (Éric Rohmer também o teve). Pouco lhe importa o local, que terá de ser junto ao mar, para onde se deverá dirigir, acompanhada pelos tios, para o poder vislumbrar. Irlanda, França, Noruega, Espanha e Portugal são as opções que se apresentam. Maio é um bom mês para viver momentos extraordinários, até para mudar de vida, mas nada garante que o anseio se materialize num período de tempo tão curto. Pode acontecer que as condições requeridas para olhar o raio verde tardem um pouco mais a surgir. Impõe-se, todavia, que ele seja encontrado até ao Outono. O céu tenderá, depois, a encobri-lo.
O raio verde tem um encanto realmente excepcional e Miss Campbell achou-o condensado numa informação que lera no Morning Post: “Alguma vez observaram o Sol quando se põe num horizonte marítimo? Sim!, certamente. Seguiram-no até ao momento em que, tendo a parte superior do seu disco tocado a linha da água, ele vai desaparecer? É muito provável. Mas observaram o fenómeno que se produz no preciso momento em que o astro radioso lança o seu último raio, se o céu, limpo de brumas, estiver então de uma pureza perfeita? Talvez não. Então, na primeira vez que tiverem a oportunidade – ela apresenta-se raramente – de fazer essa observação, não será, como se poderia pensar, um raio vermelho que virá impressionar a retina dos vossos olhos, será um raio ‘verde’, mas de um verde maravilhoso, que nenhum pintor pôde obter na sua paleta, um verde cuja tonalidade nem nos matizes tão variados dos vegetais, nem na cor dos mais límpidos mares a natureza alguma vez reproduziu! Se existe o verde no Paraíso, só poderá ser esse verde, que é, sem dúvida, o verdadeiro verde da Esperança!” Miss Campbell sabe também que há uma promessa associada à visão do raio verde, um milagre que tocará o seu observador.
Éric Rohmer tentou encontrar um raio verde durante o período de rodagem do filme, mas não conseguiu. O videasta Philippe Demard, instado pelo cineasta a prosseguir a busca, captou um, sete meses mais tarde, nas Canárias, ainda a tempo de figurar no final da película. Quanto ao livro, é necessário chegar às derradeiras páginas para ficar a saber se a busca do raio verde, de facto, é ou não bem sucedida – e, se sim, se algum milagre se concretiza – ou se o anseio de o ver é suficiente para que se verifique algo de miraculoso.
*Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1999
**http://www.cathedrale-strasbourg.fr/evenement/rayon-vert-la-cathedrale-0
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes