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O racismo é um vírus

Em países que até agora tinham regimes mais ou menos democráticos, uma das características das governações mais execráveis é a agudização permanente da belicosidade contra os adversários que em cada momento for mais útil inventar. Em vez dos diferendos bem-vindos sobre o que deve ser e como se constrói o bem comum, designa-se um ou vários causadores de todos os males, sabotam-se pontes e cavam-se ou aprofundam-se os fossos que sirvam para extremar a sociedade. Forjar um inimigo – interno ou externo – e mobilizar apoiantes para o combater, eis ao que se reduz a mais perniciosa das concepções de política. Neste sucedâneo do hooliganismo, a estratégia é inflamar os instintos mais primários, acirrando a matilha contra os bodes expiatórios de ocasião. Fazendo crer que eles existem e que são poderosos, iludem-se as responsabilidades próprias perante as contrariedades. O que corre mal é sempre por culpa de outrem. Como este procedimento não é susceptível de proporcionar qualquer beneficio, torna-se necessário ir aplacando as frustrações inflamando a turba contra um antagonista, numa espiral que não cessa. Julgar-se-ia que as tragédias do século XX tornariam inadmissível esta farsa política. Mas não. São demasiados os que se sentem confortáveis perante este logro e, em vários países, são os suficientes para fortalecer ou, mesmo, entregar o poder a gente que uma comunidade decente se sentiria obrigada a desprezar. “Com papas e bolos se enganam os tolos”, diz um provérbio conhecido. Não é, todavia, com papas nem com bolos que os tolos agora se enganam. Os sucedâneos actuais são as teorias da conspiração. Para reforçar a respectiva eficácia e melhor enganar os seus seguidores, os populistas – e não só os de direita – aproveitam-se dos símbolos religiosos. Há tempos, o italiano Salvini exibia-se, ameaçador, com um terço na mão. Agora, Trump empunha uma Bíblia como um delinquente ostentao paralelo de granito que lhe servirá para partir uma montra e saquear o que nela encontrar. Trump não destrói lojas, ele despedaça a sociedade. Não lhe bastando usar abusivamente a Bíblia, usurpa também a imagem de João Paulo II. O propósito é pérfido. A manifestação de apreço por João Paulo II é exclusivamente uma demonstração de rancor contra o actual Papa. Detestando Francisco, Trump usa João Paulo II como uma arma de arremesso para colher a simpatia dos que, como ele, anseiam por que o Papa saia do Vaticano. Mesmo assim tem pouca sorte. É que o arcebispo de Washington, Wilton D. Gregory, veio denunciar a tentativa de manipulação religiosa, sublinhando que João Paulo II não toleraria que se usasse gás lacrimogéneo e outros expedientes para silenciar, dispersar ou intimidar as pessoas que se manifestavam diante de uma igreja, “um lugar de culto e de paz”, para que o presidente dos Estados Unidos da América aí se pudesse fazer fotografar[1]. Vivemos dias dramáticos. Sobre a representação de uma tragédia de que não foi contemporâneo, escreveu Jorge de Sena um dos poemas antológicos da literatura portuguesa. Endereça-o no título aos seus filhos, mas a todos se dirige. “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” merece ser lido ou relido na íntegra, mas há dois versos que oferecem um precioso ensinamento: “Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém/ vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la”[2]. Ou seja: “Poder-se-ia dizer que todo o mal cometido no mundo se resume nisto: o desprezo pela vida”, explica o Papa Francisco numa das catequeses sobre os Dez Mandamentos[3]. Raríssimas vezes nos é mostrado com tamanha brutalidade esse desprezo, essa falência de qualquer sentimento humano, como nas imagens em que se vê um polícia a assassinar tranquilamente George Floyd, que agonizava perante a impavidez cúmplice de outros polícias e a aflição de vários transeuntes. Esta morte não é o resultado do desvario de um racista. É uma consequência de ele sentir que na chefia do país tem um dos seus. [1] https://www.cbsnews.com/news/catholic-archbishop-trump-st-john-paul-ii-shrine-violates-religious-principles/ [2] Trinta anos de poesia. 2.ª ed. Lisboa: Edições 70, 1984 [3] Catequeses sobre os mandamentos. Fátima: Secretariado Nacional da Liturgia, 2019
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
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7 junho 2020