twitter

O que lixa o Sistema Nacional de Saúde

O que muitas vezes lixa uma equipa, para não utilizar outro verbo, são os craques, aqueles que surgem a meio de uma preparação e que vêm com promessa de entrarem logo no jogo e substituírem o titular de uma determinada posição no planeamento habitual do treinador. No futebol é isso que acontece, mas os jogadores já estão mentalizados para essa possibilidade. Ainda assim, quando algum colega passa por um momento de melhor forma que o seu colega apresentado como reforço de peso e que até ganha mais, começam os desentendimentos e a equipa acaba por reflectir a situação. O que é melhor remunerado que faça pela vida, que vá buscar a bola e construa o passe do jogo, aquele que dá golo e leva a equipa ao pódio, à vitória do encontro ou a um lugar razoável na tabela classificativa! O treinador há-de reparar no que estiver a acontecer e intervir, mas o resultado acaba, muitas vezes, por o colocar em causa e ser ele mesmo o primeiro a sair e deixar vago o lugar no comando da equipa. O que se passa no mundo do futebol, passa-se em qualquer outra modalidade de trabalho em equipa, passa-se numa qualquer empresa da economia privada ou serviço do Estado. Está a passar-se, designadamente, no Serviço Nacional de Saúde (SNS). No sábado passado, algumas centenas de médicos manifestaram-se em frente do Ministério da Saúde, exigindo a revogação da norma do OE/2022 que prevê a admissão de médicos não especializados para fazer o serviço de Médicos de Família, considerando ser um ataque à especialidade de Medicina Geral e Familiar. Nas palavras do presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, tal situação traduz um "retrocesso na prestação de cuidados aos utentes nos Centros de Saúde". Segundo o mesmo responsável, o facto de haver "mais de 1700 especialistas já fora do SNS" deve-se à falta de "capacidade para os captar e reter no SNS", o que podia ser diferente se houvesse "melhores de condições de trabalho e uma valorização global" destes profissionais. Em termos objectivos, a supracitada norma prevê não apenas a integração de clínicos não especialistas numa função de saúde familiar, como também que estes possam auferir ordenados muito superiores aos colegas mais antigos e, além disso, especializados. Tal como no caso dos futebolistas, a concretização da solução prevista pelo Governo desencadeará a insatisfação dos que trabalham há mais tempo nas equipas dos Centros de Saúde que se sentirão desvalorizados e ultrapassados. Não será certamente a melhor solução para colmatar o problema de cidadãos sem Médico de Família. Qualquer médico não especialista que entrar no "plantel" de cada Centro de Saúde será olhado com desconfiança pelos pares e até mesmo pelos utentes. Mais, parece-me que o acento tónico não deve ser colocado no aumento do número de inscritos no SNS, como fez Marta Temido para justificar a admissão de clínicos não especializados, mas na criação de condições para que os especialistas que em algum momento perderam a motivação para continuarem no SNS possam repensar o seu percurso profissional e eventualmente regressar à sua função no Estado, ainda que tal não resolva tão rapidamente a situação. Abandalhar os critérios de admissão talvez não seja, de todo, a melhor solução. Antes pelo contrário. Nenhum médico com determinada tarimba aceitará, de bom grado, que algum colega sem experiência seja incluído no grupo de profissionais que tiveram de passar pelo crivo da especialização para acederem aos respectivos lugares nos Centros de Saúde. Se forem obrigados a isso, se forem confrontados com situações reais, é bem provável que procurem também cortar a relação laboral, anulando o efeito das novas admissões e, inclusivé, piorar a situação em relação ao período pré-admissões. Nenhum jogador, por melhor craque que seja, consegue ter o mesmo rendimento em todas as posições no relvado. Por mais polivalente que alguém possa ser, tal não significa igual competência nas diferentes posições no xadrez da medicina, ainda mais quando estão em causa diagnósticos e tratamento das mais diversas maleitas em pessoas.
Autor: Luís Martins
DM

DM

19 julho 2022