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O “Príncipe Próspero”

1. Escrito em 1842, A Máscara da Morte Vermelha, do escritor estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), é um conto de terror e mistério, adaptado ao cinema em 1964. Com a descrição dum ambiente lúgubre, narra uma peste cujos sintomas eram dores agudas e tonturas, os poros sangravam, surgiam manchas escarlates no corpo, especialmente no rosto da vítima, que então era completamente segregada e ficava só e sem ajuda. O “Príncipe Próspero”, vendo a situação fora de controlo, reúne mil nobres, amigos abastados, num castelo muito bem provisionado e fortificado, com divertimentos para ocupar o tempo dos convidados, enquanto a população no exterior era dizimada: "A abadia estava amplamente aprovisionada; com tais precauções, os cortesãos podiam assim desafiar o contágio; e o mundo exterior que tomasse conta de si mesmo (...)". Jamais nenhuma pestilência fora tão fatal e hedionda. No quinto ou sexto mês de reclusão, o “Príncipe Próspero” ofereceu, para distrair os convidados, um baile de máscaras duma magnificência extraordinária, que se realizava através de sete salões, decorado cada um com uma iluminação de cor distinta, sendo que todos se afastam do salão vermelho temeroso. Nesse salão há um grande relógio de ébano, cujo som, de hora em hora, era tão alto e tremendo que a orquestra parava e todos aguardavam o cessar do som para recomeçar a dança; porém, na 12.ª badalada, notou-se a "presença dum vulto mascarado que até então não havia chamado a atenção, tendo-se espalhado, aos cochichos, a notícia dessa nova presença: elevou-se imediatamente por entre a turba um burburinho ou murmúrio que exprimia desaprovação e surpresa a princípio, terror e horror por fim". Era uma figura vestida com vestes rubras e com uma máscara mortuária; as suas afrontosas vestes provocaram a ira do Príncipe Próspero, que corre até ela, para desmascará-la e entregá-la a uma punição de morte por fazer piada de mau gosto com algo que todos ali temiam; todavia, Próspero pouco adiante foi, pois caiu morto antes mesmo de tocar na figura. 2. Na verdade, um conto desenvolve sempre duas histórias: a história 1 – o quadro real – como referência, que bem poderia ter sido a “peste negra” (assim chamada porque o seu desenvolvimento provocava hemorragias subcutâneas, que assumiam uma coloração escura no momento terminal da doença), descrita no Decameron (1353), uma obra em que Giovanni Boccaccio (1313-1375) – poeta e crítico literário italiano – descreveu esse flagelo que dizimou a Europa em 1348, de início na Itália (vinda da China), em que Poe poderia ter-se em parte inspirado; se há semelhanças (isolamento num castelo para fugir da peste), avultam diferenças – na obra de Boccaccio os narradores são 3 rapazes e 7 raparigas (estas detêm a iniciativa), que se revezam em torno dum tema. Já a história 2 (quase composta em segredo) revela-nos a mestria do autor – tanto de Boccaccio como de Poe –, pela conexão profunda com os interstícios da história 1. A potencialidade em gerar diferentes leituras e interpretações torna a alegoria um dos recursos literários mais difíceis de analisar, pois também o leitor vai construindo o seu próprio texto. O limiar entre o medo, o real e o ficcional mesclam-se até ao desfecho terrífico da narrativa e à forma como aí somos conduzidos, que é de tirar o fôlego, numa (re)leitura que muito recomendo (o conto lê-se na internet). Ora, A Máscara da Morte Vermelha é uma alegoria que opera também em dois níveis de significação, originando uma reflexão sobre a condição humana, a vida e a morte, a impotência dos humanos em situações-limite. 3. Hoje, a tragédia tornou-se planetária e A Máscara da Morte Vermelha quase se cola à actual globalização: o mundo ficou pequeno e mais assustador. Da China veio um novo vírus, que, embora afecte mais a vida dos desfavorecidos, a todos atinge. Erguem-se debalde mais muros e barreiras, juntando os iguais e excluindo os diferentes, mas não há castelo por mais isolado e fechado que seja imune ao terrível bacilo: não há muito como se proteger. Tal como, no conto de Poe, o “Príncipe Próspero” foi impotente em barrar o ingresso da máscara da “morte rubra” no seu castelo, a epidemia alastrou-se desde a cidade de Wuhan, apesar das artimanhas de Xi Jinping e do governo chinês, cuja debilidade foi manifesta e depois já foi tarde para deter o coronavírus, que veio a propagar-se por todo o mundo. Donald Trump, outro “Príncipe Próspero” – decidindo unilateralmente e zombando da União Europeia – culpa sempre os que estão e vêem de fora (o “inimigo externo”), e denominou até o bacilo de “vírus estrangeiro” (primeiramente a epidemia era uma fantasia), que afinal já estava lá dentro, e que poderá até desencadear uma “guerra interna” se atitudes drásticas não vierem a suprir a ausência dum Estado social, numa sociedade em que cada um está entregue a si próprio, sem Estado social. Lamentavelmente, no mundo há muitos “Príncipes Prósperos”!   O autor não escreve segundo o denominado “acordo ortográfico”.
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
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19 março 2020