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O Natal das linhas tortas

No início do mês de dezembro de cada ano, os canais de televisão e, sobretudo, os serviços de streaming pagos que oferecem acesso ilimitado a séries, filmes, animação e documentários, incluindo títulos originais, desdobram-se na apresentação de filmes típicos de Natal, quer originais ou edições recentes, quer recuperando filmes de outros anos. O Natal como festa da família e do amor estão sempre presentes, mas o impacto da prevalência da produção norte-americana desloca a figura de Jesus e da Sagrada Família para segundo plano, matéria que é frequentemente tratada e bem em múltiplos artigos e fóruns e merece a preocupação de todos os cristãos.

Um filme que se destacou nada tem a ver com a época natalícia, com o título traduzido para português de “As linhas Tortas de Deus”, adaptação para o ecrã do livro de Torcuato Luca de Tena “Los renglones torcidos de Dios”, que nos apresenta Alice Gould, uma mulher de alta posição social internada num sanatório mental, acreditando ser uma investigadora privada que entrou voluntariamente na clínica para resolver um caso criminal, que pela sua inteligência confunde os próprios médicos no conhecimento se foi ingressada injustamente ou se padece na realidade de um grave transtorno psicológico. O que tem merecido discussão de quem viu o filme é o seu final confuso, rompendo com a expetativa do desenrolar do enredo.

Quanto às linhas tortas parecem merecer essa qualificação os enfermos mentais internados no sanatório. O escritor, com a finalidade de maior documentação, internou-se voluntariamente numa instituição psiquiátrica durante 18 dias. Segundo Torcuato, as linhas tortas são, de facto, muito tortas. Alguns homens e mulheres exemplares, tenazes e até heróicos, tentam endireitá-los. A profunda admiração que o seu trabalho produziu durante o internamento aumentou a gratidão e o respeito que sempre experimentou pela classe médica, dedicando o livro aos médicos, enfermeiros e enfermeiras, vigias, zeladores e demais profissionais que passam a vida no nobre e dedicado serviço dos mais infelizes erros da Natureza.

Nesta festividade a criatividade do filme transporta-nos para a realidade da guerra da Ucrânia. O efeito da “loucura” de um homem, de um regime, na existência de milhões de pessoas pacíficas, desejosas de paz e da prosperidade que, súbita e iniquamente, vêm o seu país barbaramente invadido, a sua família e amigos e eles próprios despedaçados física e mentalmente, os seus lares destruídos, as infraestruturas anuladas. É impossível um Natal sem um olhar para o sofrimento do povo ucraniano. Que Natal para este povo, quando o Kremlin já declarou que umas eventuais tréguas nos combates no terreno entre as tropas russas e ucranianas no Natal ou Ano Novo estão fora de questão?

Putin comporta-se como Vermebile, sobrinho e aprendiz de Maldonado ou Fitafuso, o demónio do “Cartas de um diabo ao seu aprendiz” de C. S. Lewis, a quem ensina o que deve ser feito para corromper o ser humano do cristianismo e trazê-lo para o lado do mal”, livro escrito em 1941 em plena II Guerra Mundial: “Você diz que está "bêbado de alegria” porque os humanos europeus deram início a outra guerra…é claro que uma guerra é algo bem divertido. O medo e o sofrimento imediatos de um ser humano são um alívio refrescante para as miríades de diabos que trabalham sem descanso…”. Mas até Maldonado adverte dos riscos das mortes indesejáveis ocorridas durante a guerra: “Homens são mortos nos locais onde sabem que irão encontrar a morte, e vão, se já estiverem do lado do Inimigo (Deus), preparados para ela. Continua: “Sei que Cascaférido e alguns outros veem na guerra uma grande oportunidade para atacar a fé, mas eu considero esse ponto de vista exagerado…Obviamente, naquele exato momento de horror, de luto ou dor física você poderá capturar a sua presa, quando ela deixar momentaneamente de raciocinar. Mas eu descobri que, mesmo nesse instante, se ele buscar refúgio no Inimigo (Deus), quase sempre será atendido”.

Ousemos contribuir para a paz e bem-estar do povo ucraniano, não para gaudio de Maldonado mas por amor ao Salvador, cantando a glória da noite de Natal: “Hoje a virgem dá à luz o Eterno e a terra oferece uma gruta ao Inacessível. Cantam-nO os anjos e pastores e com a estrela os magos põem-se a caminho, porque Tu nasceste para nós, pequeno Infante, Deus eterno!”


Autor: Carlos Vilas Boas
DM

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22 dezembro 2022