Escrevo esta missiva nas vésperas da tua partida. Faço-o, como deves calcular, munido de um enorme prazer pela tua ida; porque sei que há uma volta que te trará ainda mais apuradinho. Vem-me à cabeça a primeira estrofe do poema de Ary dos Santos, cantada por Carlos do Carmo: Agarro a madrugada/como se fosse uma criança,/uma roseira entrelaçada, uma videira de esperança. O resto do poema “Um homem na cidade” é menos que tu, porque há em ti e em Braga uma simbiose que muitos já reconhecem, mas que outros, poucos, teimam em não valorizar. Aliás, se me permites, essa é a grande metáfora do exercício a que te tens dedicado, tu e muitos outros que por esta cidade abaixo e acima, nunca perderam a vontade e amam o Teatro como nunca. Não me é difícil, pois, falar de o Homem e a Cidade, pelo que representaste e representas para gerações que, antes e depois do 25 de Abril, conheceram-te pela tua bondade, pelo teu carisma e pelo teu enorme talento fora e em cima dos palcos. Não julgues este exercício como desproporcional, porque essa tem sido a falha da cidade para contigo e agora que partes para os palcos do mundo, nas mãos da atriz, dramaturga e encenadora espanhola, Angelica Lidell, só posso expressar o orgulho de ter estado contigo em palco e como foi fundamental o teu papel para que a Cultura não fosse apenas uma expressão política, mas social e profundamente distinta do palco dos absintos que continuam a dourar a arte que tu tão bem representas; tu e o José Miguel Braga*, o Almeno Gonçalves, o Carlos Feio, o Afonso Fonseca, o António Durães ou o José Gonçalves, entre tantos outros que ajudaram a construir as bases de uma cidade onde novas gerações de atores e atrizes constroem-se todos os dias em palcos de escola ou de rua. Um dia destes, quando regressares depois de vestires o papel de “Padre” nos palcos de Madrid, Paris ou Amesterdão, espero que a cidade olhe para ti e para o teu significado, como deveria olhar para a construção de dezenas de textos que o José Miguel tem escrito para gerações sucessivas de jovens, deixando um património que já não é do Homem mas da Cidade. O percurso não foi fácil ao longo das quatro décadas de fascínio, ma valeu a pena ultrapassar as injustiças do tempo e dos homens com a mestria coletiva de fazer acontecer magia e outras trapalhadas, umas mais a sério do que outras, montadas numa espécie de tombola em que uns vivem e outros, infelizmente, como o José Lopes desaparecem. A precaridade que sempre marcou as andanças e boas aventuranças dos atores e atrizes de Braga, não foi suficiente para chegar aos calcanhares da vontade e do amor ao teatro. E mesmo que aqui e ali, se levantassem as vozes costumeiras da desgraça, da ignorância ou da crítica fácil, mantiveste o teu ritmo noturno e a tua vontade de sempre fazer melhor, não apenas como parte do gozo pessoal, mas tão só como espelho da disponibilidade, da bondade e da solidariedade que sempre marcaram o teu trabalho precursor na extinta Casa da Cultura e nos diferentes palcos (ex. TIP- Teatro Independente Pronto ou no mais recente PIF’H-Produções Ilimitadas Fora d´Horas). Coincidência, ou não, leio nas vésperas da tua ida, a notícia de que a Universidade do Minho acaba de anunciar a criação da Casa do Teatro e que escolheu o Teatro Jordão, em Guimarães, para o fazer. Mau seria, se neste momento, não olhasse e percorresse o passado, para lembrar o TUBRA-Teatro Universitário de Braga e o que ele significou para a vossa e para a minha geração. Esquecer seria amordaçar a memória no compêndio das injustiças a que a Cidade nos habituou. Esperemos que, agora, a magia aconteça e finalmente a cidade te mereça. Obrigado Camilo. Boa vidinha por esses palcos fora.
*Declaração de interesse: O José Miguel Braga é meu irmão
Autor: Paulo Sousa