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Ó gente da minha terra…

Passaram-se cinco longos anos até que pudesse voltar à terra, pela primeira vez. Casou e minha mãe seguiu-o até Clermont-Ferrand, cidade encravada entre montanhas que prosperava à sombra das fábricas Michelin. Foi aí que eu e minha irmã nascemos. Quando viemos para cá, em Julho de 1983, Paredes de Coura era para nós tão-somente o lugar idílico das férias.

Com as economias amealhadas lá fora, meus pais tinham construído uma casa, no rés-do-chão da qual instalaram um café e uma mercearia. Tinha 12 ou 13 anos… Estava atrás do balcão. Era início de Primavera, um final de manhã ensolarado. Entrou um grupo de três ou quatro homens, um dos quais era um “contratador”, uma dessas figuras típicas da ruralidade minhota que percorria o concelho de lés-a-lés, com uns maços de notas nos bolsos, para negociar algumas cabeças de gado. Conhecia os lugares mais recônditos e os atalhos que a eles levavam. Sabia na ponta da língua os nomes e alcunhas de cada morador, as estórias de família, todos os usos e costumes das redondezas.

Mal entrou, levou a mão ao chapéu para cumprimentar os presentes. Saudou-me com voz grossa, calejada pelas longas conversas de negócio. Pediu um “quartilho” de vinho e uma sandes. Trouxe uma caneca cheia. Servi o tinto verde numa daquelas tigelas que se compravam na feira. Seguindo as regras de etiqueta que ouvira numa aula de Educação Cívica, enchi-a apenas até três quartos. Uns segundos mais tarde, uma estridente gargalhada ecoou em todo o estabelecimento.

– “Tens medo de encher até cima? Se esbordar não faz mal, está tudo pago! Deita aí…”.

Durante muito tempo, sempre que me via, o contratador recordava o episódio. Naquele dia, fiquei melindrado. Com o tempo, entendi que a razão não estava forçosamente do meu lado. Aliás, nem se tratava de razão. Com o passar dos anos, aprendi não só a conhecer a gente de Coura, mas sobretudo a sentir aquela terra como minha. Com os cinco sentidos. Há sabores e cheiros, palavras e entoações, estórias e costumes, paisagens e texturas que são nossos. Uns são únicos, outros nem por isso. Mas sentimo-los como nossos…

São lugares que fazem parte do património (i)material da minha humanidade. São expressões que mais ninguém percebe, mas que fazem todo o sentido. São recordações de momentos que pareciam irrelevantes, mas que marcam uma vida. São saudades de gente que partiu e deixou um vazio que ninguém pode preencher. É uma certa capacidade de resiliência própria de um território muito tempo esquecido. É uma certa forma de viver a fé. São raízes onde se bebe alguma simplicidade, honestidade, capacidade de trabalho e generosidade. Numa terra onde a porta de casa estava sempre aberta, mesmo que os donos se tivessem ausentado, aprende-se a abrir o coração. E um conjunto de defeitos, entre os quais uma certa aspereza… Também esses são nossos…

Hoje, sempre que posso, volto à terra... Neto, bisneto e tetraneto de agricultores, mas ignorante das coisas da lavoura. Acontece esquecer-me os nomes das gentes da minha terra ou nem sequer reconhecer alguns dos mais novos. Mas sempre que me perguntam donde sou, a resposta brota como uma evidência. Não por bairrismo bacoco, quero crer. A nossa terra é o lugar que sentimos como nosso. O lugar que sinto como meu é junto a uma pequena ponte sobre o rio Coura, em Bico, a meia dúzia de passos da casa de meus pais. Não há outro lugar no mundo que faça tanto sentido…

 


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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16 setembro 2017