Existe ainda uma certa tendência para associar Nietzsche ao nazismo e ao fascismo, não só porque a irmã do filósofo alemão, Elisabeth Förster-Nietzsche, muitos anos após a morte dele, relacionou abusivamente o seu pensamento aos ideais de Hitler, mas também porque muitas vezes se interpreta a mensagem do ideólogo da liberdade de consciência da pior forma.
Nietzsche não é de meias palavras, é implacável. É tal a crueza dos escritos do homem que anunciava filosofar a golpes de martelo que há quem o julgue defensor da crueldade por isso mesmo. Até o apelidaram de antissemita. Só que ele amava a higiene mental, não o arrebique, e não se importava com o modo de dizer as coisas: simplesmente dizia-as. Para escrever basta uma caneta – ou, nos tempos atuais, de um teclado de computador –, e para pensar basta o cérebro. Que importam os atavios da linguagem ou a preocupação com o politicamente correto? É por receio de ofender alguém? Quem tem receio de ofender nunca dirá nada de útil, dirá apenas bagatelas. A filosofia é contundente, nua e crua, doa a quem doer.
Por isso, se Nietzsche tivesse testemunhado a ascensão e a expansão do nazismo e do fascismo do século XX ficaria escandalizado com os argumentos, as doutrinas e as práticas dos seus mentores. Julgo até que os insultava. Jamais os louvaria, ou sequer os aceitaria, uma vez que constituem a negação absoluta do seu pensamento, totalmente adverso ao nacionalismo, à vingança e à humilhação. Mussolini, por exemplo, apregoava que o povo deve «Crer, obedecer e combater». Basta esta máxima para afastar Nietzsche do fascismo. Ele não cria em nada que não fosse o livre-arbítrio, não a submissão, nem obedecia senão à conduta do ser humano consciente de si mesmo, e se combatia era pela sanidade mental, completamente liberta do peso de um doutrinador ditando regras no alto de um palanque.
No tocante ao nazismo, Nietzsche, quase como profeta, escreveu frases elucidativas sobre uma certa leviandade germânica que leva os alemães a enveredar não raras vezes pela inconsequência. No seu Ecce Homoproclama: «Nada me deve impedir de ser violento e de dizer aos alemães umas quantas verdades duras. Terão na consciência todos os crimes contra a cultura dos últimos quatro séculos? Acobardam-se perante a realidade, que é também cobardia perante a verdade, pela sua falta de franqueza, por “idealismo”. Os alemães levaram a Europa a fracassar nos valores nobres que dizem sim à vida. São responsáveis pela enfermidade e irrazão mais adversa à cultura que existe, o nacionalismo, essa neurose nacional de que a Europa padece. Nunca os alemães tiveram um século XVII de severo autoexame como os franceses. O que na Alemanha se chama profundo é, em rigor, a falta de limpeza do instinto para consigo.» E prossegue: «Onde quer que a Alemanha chegue, corrompe a cultura. É incapaz de qualquer conceito de grandeza». Wagner é para Nietzsche a exceção admirável, é «o antídoto contra tudo o que é alemão.»
O nazismo, ao contrário do que muitos ainda pensam, não foi força nem guerra, muito menos grandeza ou superioridade, foi simplesmente vingança aliada à soberba. O resultado foi uma catástrofe de proporções bíblicas, a matança generalizada, o massacre, vingança sobre vingança, conduzindo ao enfraquecimento da posição da Europa no mundo, ao medo do futuro e a um extremar de oposições ideológicas entre um comunismo selvagem que se achou no direito de impor à força a sua lei, e um capitalismo não menos bárbaro nem menos embusteiro, que explorou vergonhosamente os povos mais pobres do globo, e que não se importava de recorrer às armas para cimentar o seu império. Nada com que Nietzsche se pudesse regozijar.
Na Genealogia da Moral, quando é dito que tudo se judaíza, se cristianiza, se aplebeia a olhos vistos, não tem nada que ver com diferenças raciais ou sociais, refere-se tão-só à cultura do ódio soez, da baixeza do ressentimento, da vingança com que a mentira deliberada pretende exercer o seu domínio, seja por ação de quem for. E o que é esta mentira? É a intenção, por parte dos demagogos, dos imbuídos de esperteza saloia, de submeter a mente humana a catequeses e a pretensos valores arraigados só para alicerçarem o seu posto.
Se Nietzsche tivesse presenciado o ódio racial ou o fascismo do século XX, ou mesmo conhecido os populistas atuais, haveria de atacá-los com palavras tão contundentes como as que usou, por exemplo, contra Kant, um defensor da moral cristã e do imperativo categórico que, segundo o filósofo de Conisberga, conduz a ação humana: «O êxito de Kant é apenas um êxito de teólogo. Tal como Lutero, Kant foi mais um travão na já pouco sólida probidade alemã.» Para ele, Kant é decadente e apregoa a decadência, é nocivo e é uma ameaça à vida. Chega ao ponto de escrever, no parágrafo 11 do Anticristo: «Kant tornou-se idiota». Para Nietzsche, Kant e Lutero justificam o injustificável: a vassalagem ao vazio.
Pois estas palavras duríssimas seriam usadas sem dó nem piedade contra aqueles que hoje em dia tentam sujeitar a opinião pública a uma suposta doutrina da legalidade legitimada pela tradição. Isso foi o que fizeram o judaísmo e o cristianismo; e quando Nietzsche censura duramente os judeus não é por ser antissemita, muito longe disso, pois não há preconceito que ofusque a clareza pura e dura do filósofo, ele censura a religião e a moral judaica, tal como ataca ferozmente os cristãos e os seus preceitos inabaláveis, como a ideia do pecado original e a sacralização dos ensinamentos. Leis que se devem manter inalteradas são leis irracionais.
Quando, no Anticristo, escreve: «O que é a felicidade? É o sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência foi vencida. Não é a paz, mas a guerra», refere-se à guerra pela libertação da mente, à nossa ascensão a nós mesmos, combatendo as prenoções, livres de regras morais castradoras do pensamento. «Os fracos e falhados devem perecer», aqueles que se abstêm da luta por si mesmos e se entregam facilmente à submissão, esses são os fracos e os falhados. Ele próprio alude ao seu conceito de guerra no parágrafo 9 doAnticristo: «Contra este instinto teológico [a subversão da verdade] faço eu a guerra», ou no primeiro capítulo do Ecce Homo: «Por índole, sou guerreiro. Atacar faz parte dos meus instintos. O pathosagressivo pertence à força, assim como a vingança pertence à fraqueza». E acrescenta: «Na minha prática de guerra, só ataco causas vitoriosas.»
Eis um dos exemplos que Nietzsche apresenta para a falácia da realidade. Na Genealogia da Moralescreve: «Que os cordeiros tenham horror às aves de rapina, compreende-se; mas não é uma razão para querer mal às aves de rapina. E se os cordeiros dizem: as aves de rapina são más, o que for perfeitamente o contrário, o que for parecido com um cordeiro, é bom». As aves simbolizam os fortes, os cordeiros simbolizam os fracos. Segundo ele, a origem das ideias de bom e de mau, de bem e de mal, está nesta deturpação facciosa, aparentemente compreensível. Os demagogos servem-se desta tendência dos “cordeiros”, alimentam-na, aperfeiçoam-na, embelezam-na para metamorfosear uma coisa no seu contrário.
Em Assim Falava Zaratustra, Nietzsche diz que os tísicos da alma têm sede de renúncia, ou seja, deixam-se convencer facilmente. Há populistas hoje em dia que tentam convencer os tísicos da alma do contrário da verdade, negando até as evidências científicas, como as alterações climáticas provocadas pelo abuso do meio ambiente, ou verdades históricas comprovadas, como quando o então candidato à presidência do Brasil, Jair Bolsonaro, afirmou perante os eleitores que os portugueses não tinham praticado o tráfico de escravos em África, ou fabricando inimigos do “bem” para criar um escudo protetor constituído por uma multidão de tísicos, como faz Maduro na Venezuela ou Erdogan na Turquia.
É preciso derrubar ídolos, nascer para a realidade, abrir os olhos, olhar e ver. Nietzsche diz que é independente de partidismos. Se refletirmos, os partidos (falando aqui dos políticos) têm uma visão deficiente do mundo, fragmentada (partida, tal como o nome indica), por se basearem numa doutrina, algo que o filósofo alemão abominava. O mundo é inteiro, e é diante do todo ele que os nossos olhos se abrem, ao esplendor da luz, pois quando a vontade humana não age, de tão submetida, abre o caminho à fraqueza da alma, à renúncia, à entrega da nossa vida à pestilência da alienação, à doutrina fascista ou a qualquer outra imposição castradora da mente.
Autor: João Nuno Azambuja