Recentemente, Portugal foi submergido por duas “ocorrências” que, no mínimo, podemos reputar de muito negativas ou graves. Falo obviamente do incêndio de Pedrógão Grande e do relevante furto de armas num quartel em Tancos. Em ambas as situações sobressai um Estado fragilizado. No caso do incêndio de Pedrógão, para lá de causas ou culpas várias que subsistam, a amarga imprevisibilidade dos elementos naturais pode servir de atenuante. A despeito das muito gravosas consequências, sob o ponto de vista humano, resultantes deste incêndio, proponho-me aqui refletir sobre a segunda ocorrência, enquadrando-a na relação entre o Estado e a existência de força armada pública, classicamente designada por exército(s).
Antes de avançar para tal, e no atinente à estabilidade política, registe-se que se este armamento furtado provadamente vier a ter mau uso interno em atentados terroristas, sobretudo neste caso, o capital político granjeado pelo Governo de António Costa, através de uma estratégia económico-financeira que amesquinhou a propagandeada inevitabilidade do miserabilismo adstrito à governação de Passos Coelho, pode rapidamente esvair-se, não obstante o acumular recente de bons indicadores económicos.
No longo curso da história das nações, ou entidades políticas afins, o papel do Estado, ora de forma excessiva (opressiva) ora por omissão, tem-se mostrado incontornável para a afirmação ou para o espezinhamento da liberdade.
Por uma questão de comodidade, fixemo-nos fundamentalmente no espaço do que hoje se designa por mundo Ocidental. Desde a cidade-estado de Atenas, modelo primeiro para uma democracia de elites ou de “casta” (exclusivo da minoria de cidadãos), à República romana e ao subsequente Império, o Estado – ou seja, o poder público – assumiu um peso relevante como garante da ordem estabelecida, desde a regulação ou intervenção na atividade económica à segurança militar. O desaparecimento do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) originará uma reformulação do espaço público europeu ocidental, com a emergência de novos reinos nacionais ou impérios menores e mais ou menos efémeros, sendo que entretanto se afirmará progressivamente o feudalismo, caracterizado por uma considerável privatização de poderes até então típicos do Estado (defesa, emissão de moeda, justiça, coleta de impostos).
No nosso país, a Reconquista fez-se com as tropas do rei (que tinha por seu tudo aquilo que hoje designaríamos por propriedade do Estado), mas também muito apoiada no poder bélico da nobreza e das ordens religiosas militares, designadamente. Ainda no nosso país, a centralização do poder régio progressivamente observada a partir de finais da Idade Média será marcada por uma crescente importância do rei na arregimentação do exército. Todavia, só no contexto da Guerra da Restauração, após 1641, surgirá em Portugal um exército permanente da responsabilidade do Estado.
Classicamente, as Forças Armadas serviram para defender a soberania dos estados ou para afirmar e sustentar impérios, designadamente coloniais. Não poucas vezes, porém, e mormente no pretérito século XX, os exércitos promoveram ou sustentaram também regimes políticos autoritários (o Estado Novo em Portugal, o Chile de Pinochet ou o Brasil, em dois períodos, para citar apenas três exemplos). Em contraposição, ainda no nosso país, os militares abriram estradas de liberdade com a Revolução Liberal de 1820 ou, mais recentemente, com a Revolução de Abril de 1974, sendo que em ambos os casos, entre os revoltosos, para lá de genuínas e generosas motivações filosóficas ou ideológicas, não deixaram de estar presentes motivações de ordem corporativa.
Agora, voltemos ao ponto. Ainda que possa não se tratar de um caso singular no panorama europeu ou mundial, num contexto de paz interna, como foi entretanto lembrado por altos responsáveis políticos e militares, o presente furto de armas num quartel de Tancos, pela sua dimensão ademais, assume um foro deveras inusitado e incompreensível, e por isso também preocupante. Uma estrutura (as Forças Armadas, ou o exército neste caso) sobre a qual recai o papel de garante último da independência e da liberdade da República (Título X, parte III, da Constituição atual), pelas capacidades que resultam do seu monopólio legal para promover o exercício da guerra, em tempo de paz tem forçosamente de assegurar o controlo das armas de que dispõe.
As restrições orçamentais a que Portugal tem estado sujeito nos últimos anos, fragilizaram vários serviços públicos, e podem explicar parcialmente um dos flancos deste grave incidente, como enfatizam sobretudo a oposição política e algumas vozes castrenses. Porém, a economia ou a gestão económica, numa definição mais ou menos clássica, é entendida com a arte de responder a múltiplas necessidades mediante recursos escassos. Ou seja, é necessário estabelecer prioridades quando o mapa de necessidades suplanta as disponibilidades financeiras. No caso vertente, uma prioridade inquestionável do exército – a guarda das suas armas – não foi cumprida com rigor.
* Doutor em História Contemporânea pela FLUC
Autor: Amadeu Sousa