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O espírito democrático: a harmonia de uma polifonia de vozes

Escolhi o título depois de escutar a homilia da Eucaristia das 10:30 horas da Basílica dos Congregados, no passado Domingo, dia em que se celebrou o Pentecostes. Dar-lhe-ei, como de outras vezes em que a liturgia ou algum orador me soprou ou inspirou um tema, um conteúdo diferente do que foi aí seguido. O objectivo do que abordarei aqui será, naturalmente, mais modesto e terreno.

As coisas do Alto podem sempre inspirar e ajudar os homens a definir e a acertar rotas e caminhos. Pena que nem sempre os actores políticos sejam crentes ou estejam disponíveis a escutar o Espírito, o que se escreve com maiúscula. Mas, ainda se estivessem disponíveis para compreenderem e aceitarem o outro, o que se lê da mesma forma, embora se escreva com letra minúscula – refiro-me ao espírito democrático –, muito podia ser diferente. Aspirar à maturidade democrática só é possível quando se segue um caminho democrático, que apenas se descobre com a orientação do espírito democrático. Na verdade, quando não se atende a este, não raro se segue outro que conduz ao totalitarismo ou, ao menos, que leva uma sociedade por sendas de desrespeito para com os valores fundamentais da sua Constituição, como os da solidariedade, da justiça social, da igualdade perante a lei e o da representação.

Da mesma forma que o Espírito permitiu que a mensagem divina fosse entendida harmoniosamente por todos os “judeus piedosos”, respeitando a língua de cada um, assim o espírito democrático devia respeitar as opções de todos e cada um dos cidadãos de um país. Numa orquestra, a diversidade de instrumentos, com sons e tons diferentes, permite uma harmonia que encanta o ouvido de quem participa e assiste. Se algum sair do ritmo ou o executante tiver a veleidade de querer destacar-se, a não ser que a partitura lhe destine uma intervenção a solo, lá se vai a unidade e a beleza da obra. No concerto político, a polifonia dos programas partidários, deve permitir a harmonia do conjunto, sob pena de se não respeitar o espírito democrático. E não havendo unanimidade de posições, como é comum acontecer e também saudável, há que atender às maiorias, mas sem esquecer as minorias, o que se significa que o conjunto das opções deve ser tido em conta nas decisões dos governantes.

Escrevi neste espaço na semana passada, a respeito do Orçamento de Estado para o ano em curso, que “apenas o Partido Socialista achou que o documento [que apresentou e fez aprovar] respondia aos problemas do país. Os demais entenderam que não […]. Os votos dos deputados que se abstiveram na votação final não bastam para se concordar com o que diz a maioria”. E o Orçamento foi assim mesmo aprovado sem que fossem tidas em conta as propostas de uma larga franja dos partidos da oposição, o mesmo é dizer, de uma parte significativa da população. O espírito democrático não esteve, portanto, presente na decisão, ficando prejudicada a harmonia do conjunto. Uma parte das vozes não se fizeram ouvir porque o maestro assim decidiu. Infelizmente, tem sido sempre assim, apesar de se publicitar o mesmo número de vezes que o diálogo faz parte do processo. Só que não há diálogo por que sim, apenas por que é verbalizado, mas apenas quando se atende ao espírito democrático. E só há espírito democrático quando a harmonia resulta de uma polifonia de vozes. Em política, o uníssono apenas existe em regimes autocráticos e totalitários, ainda assim desrespeitando a vontade e os interesses dos cidadãos. Enquanto as “maiorias de diálogo” continuarem com ideias fixas, sem conseguirem afinar todas as vozes do coro e os instrumentos da orquestra, o concerto não será um sucesso. No fim do evento, muitos deitarão culpas ao maestro, outros aos instrumentistas e outros ainda aos solistas ou a alguns dos coralistas, abrindo-se espaço para a afirmação absoluta das forças maioritárias e a inviabilização da possibilidade de cada parte contribuir, por inveja e ciúme, para o bem comum.


Autor: Luís Martins
DM

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7 junho 2022