Tenho na minha sala de jantar uma gravura que se assemelha a um vitral de uma qualquer igreja católica romana. Já não sei onde a comprei, a quem a comprei e quanto me custou, mas sei por que a comprei. Hoje, quando olho para ela, recordo o motivo que me levou a adquiri-la: os olhos. Estes olhos, olham para quem os contemplam, principalmente quando a luz do dia ou das lâmpadas do candelabro batem nele. Então emerge bem lá fundo da sua fixidez de agonizante, um brilho cristalino que consola quem o ama. Não quero dizer que eu tenha Dele um tratamento privilegiado pelo facto de eu a ter arrancado dum montão de coisas do alfarrabista onde ia procurar uma primeira edição do dicionário da língua portuguesa, de Cândido de Figueiredo. Quando lhe limpei o pó que sobre ela dormia, um revérbero coado que fugia à soturnidade da loja, fixou-se em mim; pareceu-me que Ele me pedia que o retirasse dali. Foram aqueles olhos reluzentes que me falaram. Hoje está na minha sala de jantar, de braços abertos, ainda que pregados, e parece-me dizer: deixai vir a mim não apenas as criancinhas mas todos os necessitados. Fico tempo sem fim a olhar para o meu “vitral” e a cada movimento de postura no sofá em que me reclino, os seus olhos seguem-me numa vigilância discreta mas persistente. Desculpem-me tudo isto não passa de ilusão deste pensamento fértil em arranjos romanescos, mas romanescos não são aqueles olhos luzentes. A ornamentação do meu vitral tem iluminuras em cerco, fazendo-me lembrar as que os frades nos silêncios conventuais faziam para livros de orações ou os ornatos para princípios de capítulos dos manuscritos medievais. Tenho que confessar um pecado: fixo-me na beleza do vitral e quase me esqueço do sofrimento da crucificação do Cristo que está na minha sala de jantar como enfeite. E não pode ser assim, porque naquele rosto crispado de dor e mágoa, existe uma tragédia pessoal que se tornou humana. Um sofrimento destes é maior que um mundo. Não tem medida. As suas mãos, pregadas na cruz bela do vitral, escondem a rudeza do madeiro e a dor das marteladas dos seus algozes. Deus espera-O no cimo do vitral com um rosto sereno e ansioso por receber em seu reino um filho que acaba de cumprir uma missão. Tudo isto eu leio no meu vitral, mas tive de parar aqui o escrito porque me fugia a razão; o amor por este meu herói de sempre, galgava a razão. Nunca lhe pedi milagre; a minha longevidade já é um favor. Isto por um lado. Por outro entendo que um amigo não deve pedir favores ao amigo. E este, se lhos faz depois do lhos terem pedido, na verdade não deu, emprestou com usura. Não faço mercado com promessas nem sequer olho para o Cristo da sala como um caminho de favor. Adoro-O. A maior prova de amor por alguém é não o desgostar. Isto vem a talhe de foice: quando oiço dizer casei para ser feliz , julgo que deveria dizer, casei para fazer o outro feliz. O casamento não é uma agência cambial onde se vai trocar felicidade por companhia. Olho para o Cristo da sala e Ele parece-me sorrir depois de ver o que escrevo. Se está feliz, eu também estou. Que me não zupem os iconoclastas.
Autor: Paulo Fafe
O Cristo da sala

DM
11 julho 2022