Há dias, um amigo repetiu o repto para que me lançasse na tarefa de escrever um livro sobre as cidades - um retrato da multiplicidade conceptual que tem caracterizado, na última década, o mundo urbano.
É uma tarefa gigante, não por não ser alcançável, mas porque vivemos um tempo de total “anarquia” nos modelos e soluções que invadiram literalmente as autarquias, cá e lá fora. São, marcas, conceitos, soluções, visões, umas mais idealistas do que outras, algumas forjadas para se venderem como milagres, outras bem-intencionadas, mas desprovidas de um acerto com a realidade dos factos.
Há como que uma espécie de paranóia que força a procura da afirmação autárquica por adventos que a tornem mais apetecível na hora de atração por investimentos, pessoas, serviços, indústria; a tal ponto que muitas sonham em ser verdes, afirmam-no que o são, mas continuam sem resolver problemas básicos como o saneamento e ser verde vai muito para além da salubridade urbanidade. Outros querem ser azuis, mas nem controlam a montante o que penaliza os cursos de água, nem conseguem progredir a jusante em soluções integradas. Na panóplia de marcas distintivas, parece destacar-se o conceito mais vendido na última década (3.6 biliões de dólares de custos previstos até 2025): cidades inteligentes. Contudo, nenhuma cidade se preocupou em investir primeiro em gestão inteligente, antes de querer arvorar-se de transformar um território numa espécie de laboratório tecnológico onde se vão experimentado soluções que nunca são definitivas. Em matéria tecnológica nenhum investimento é perene, caduca cada vez mais cedo. E contudo, sobressai uma espécie de atração fatal pela novidade, pela solução que melhora a gestão, mesmo que depois se chegue à conclusão que quem vendeu a ilusão, estava de boa fé quando apresentou apenas algumas peças de uma máquina que é sempre muito mais complexa do que parece. Nesta espécie de jogo do rato e do gato (procura e oferta), há que ponderar se os modelos que nos querem vender são os apropriados para as necessidades que tempos, ou são uma imagem pérfida do princípio comercial: se não há, cria-se a necessidade. Foi assim com o telemóvel, é hoje assim com a sensorização da pegada humana. Mais do que nos iludirmos com a notável rentabilidade da industrialização tecnológica das nossas vidas, seria útil, parar para pensar que, a satisfação das necessidades individuais e coletivas, é dinâmica, exigente, mas é sobretudo humana. A pobreza não se combate com tecnologia, mas com o fim da sua gestão. A falta de trabalho ou se preferirem o ajustamento do que cada um gostaria de fazer às necessidades do coletivo, consegue-se, percebendo, à partida, que não são apenas as necessidades da indústria que tem de ser satisfeitas e que querer ser sociólogo ou geógrafo, é tão importante como a arte circense ou a ópera, ou simplesmente nómada digital.
A construção das cidades faz-se da multiplicidade, da diferença, do arrojo em reinventar o nosso papel social. Essa é a maior das riquezas distintivas; é talvez o fator de atração que reconhece viabilidade a um território e lhe incute a expressão multifacetada que ambicionamos como coletivo.
Escrever um livro sobre esta perfusão quotidiana que tolhe o espírito de quem governa e deixa como náufragos, os habitantes de um território, tem tanto de atrativo como de fatal e cá para mim, demorará tempo até analisarmos de forma distante, as consequências da ilusão.
Esta não é uma declaração contra a tecnologia, ou contra a necessidade de afirmar a identidade através de uma marca, mas é a constatação simples de que escrever um livro sobre o caos conceptual em que mergulhamos nas últimas décadas, correria o risco de estar desatualizado quando chegasse às suas mãos. Acabaria como todos os produtos perecíveis por ficar fora de prazo.
Temo que não chegue boa vontade ou a necessária boa fé para encontrarmos o fio à meada, tão tolhidos que estamos com a atração pelo novo. Apesar da palavra sustentabilidade percorrer hoje todas as áreas do nosso quotidiano, seria importante, olhar para a nossa montra e perceber que o mais importante, nesta fase da civilização, é sobrevivermos a nós próprios e às nossas ambições. Se lá chegarmos, será possível, talvez, refletir, em livro, a falta de lucidez que tem feito o seu caminho como marca no nosso quotidiano coletivo e urbano.
Obrigado Miguel!
Autor: Paulo Sousa