A indiferença perante a igualdade manifesta-se, por exemplo, na circunstância de a disparidade salarial aparecer como legítima nas nossas sociedades. Ela é constatável, diz Pierre Rosanvallon, nas remunerações dos “CEO” (sigla de Chief Executive Officer, pretensiosamente usado entre nós em vez de director executivo). Os defensores dessas retribuições extravagantes costumam dizer, como se sabe, que a competência tem de se pagar, argumento que nunca é extensivo aos salários de outros profissionais competentes.
O raciocínio, de resto, é desmentido quando se olha para os deploráveis resultados da incompetência de inúmeros CEO. Se um exemplo fosse preciso, o mais medalhado seria talvez Zeinal Bava que, em 2013, o Diário de Notícias referiu ter sido considerado o “melhor CEO da Europa nas telecomunicações” e, em 2014, o Presidente da República, Cavaco Silva, condecorou com a Grã-Cruz da Ordem de Mérito Empresarial. E em matéria de disparidades salariais, o caso dos CEO, nota Pierre Rosanvallon, não é o pior, pois alguns desportistas ainda ganham mais.
Para se perceber melhor a desproporção entre o salário de um jogador de futebol de elite e qualquer pessoa comum, a BBC disponibiliza no seu site uma singular calculadora que indica quanto tempo seria necessário ao leitor para ganhar o salário de um futebolista de topo*. O resultado é elucidativo, se compararmos o salário de Cristiano Ronaldo (se se preferir, pode-se seleccionar o de Messi, Neymar e mais cerca de vinte jogadores; ou o dos treinadores José Mourinho e Pep Guardiola) com o salário médio laboral português (que é de 13.100 euros por ano, segundo a BBC, que atribui o cálculo à Organização Internacional do Trabalho).
Cristiano Ronaldo ganha 36.400.000 euros por ano. Ele obtém em quatro minutos o que leva uma semana de trabalho a ganhar quem, em Portugal, recebe um salário médio. A segunda comparação resulta mais impressionante: quem ganha o salário médio precisa de 2494 anos de trabalho para obter o rendimento anual de Ronaldo. Ou seja, se tivesse começado a trabalhar no ano de 477 antes de Cristo estaria agora a alcançar o que o jogador acumula num ano.
A calculadora da BBC oferece diversos outros dados e finaliza dizendo que, enquanto se espreitaram as contas, durante três minutos, o trabalhador com salário médio ganhou menos de dez cêntimos e Ronaldo quase duzentos euros. Ao fim de dez minutos, o ecrã mostrava que Ronaldo já tinha ganho o ordenado mínimo e o trabalhador com salário médio ainda não tinha amontoado 25 cêntimos.
Se contas semelhantes tivessem sido feitas comparando o que Ronaldo ganhava há dois anos, usando uma calculadora mais antiga que a BBC mantém on-line, as discrepâncias salariais reduziam-se a cerca de metade. Bastaria ter começado a trabalhar em 757 depois de Cristo para ter o rendimento anual de Cristiano. Para o atingir, em vez dos quase dois mil e quinhentos anos, teriam sido suficientes 1260 anos. Não se pode dizer que a disparidade não tenha entrado em órbita.
As desigualdades devem-se, em grande medida, a uma economia assente na regra: “the winner takes all” (o que vence fica com tudo), diz Pierre Rosanvallon, observando que “aquele que tem mais capacidade para marcar golos num jogo de futebol vai ganhar mais 10 ou 100 vezes que os outros”. Esta cultura, que o historiador prefere designar por ideologia, faz acreditar que o sucesso de um colectivo repousa grosso modo no sucesso de um pequeno número de indivíduos. Por isso, Pierre Rosanvallon chama a atenção para a “verdadeira dimensão ideológica que se traduz no consentimento da desigualdade”.
O historiador considera que a chegada de uma nova economia da inovação veio reforçar essa ideologia ao fazer com que um pequeno número de pessoas consiga acumular uma riqueza enorme. “Estou a falar da Microsoft, do Google, do Facebook, etc.”. Não é só, portanto, a globalização que leva a uma aceitação da desigualdade, são também as condições da economia. É que elas são vistas como legítimas, explica Pierre Rosanvallon, concluindo que esse é “o grande problema: para lutar contra as desigualdades, temos de lutar contra o consentimento das desigualdades”.
*O endereço é http://www.bbc.com/sport/41037621. O jornal espanhol El Mundo também disponibiliza, desde segunda-feira, uma calculadora idêntica, que permite fazer outras comparações, com, por exemplo, gente do espectáculo, como a cantora Taylor Swift, a artista mais bem paga de 2016, ou da política e da economia espanholas: http://www.elmundo.es/sociedad/2017/09/25/59c8eb2f46163f2f1a8b4582.html
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
O consentimento das desigualdades

DM
1 outubro 2017