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O chinês que comeu morcego

Sosseguem, que não vou dissertar sobre a teoria da conspiração. Sei bem que a tese da guerra biológica que, a propósito da Covid-19, tem sido propalada nas redes sociais e em alguns órgãos de informação carece de base fáctica e científica. E não ignoro igualmente não estar demonstrado que na origem da pandemia tenha estado um chinês de Wuhan que num mercado local tenha manipulado carne de morcego ou se tenha banqueteado com uma sopa confeccionada com este mamífero voador. O que se sabe é que as próprias autoridades chinesas acreditam que, tal como noutros surtos de doenças respiratórias agudas graves, ocorridos em 2003 e em meados da década de 2010, causados igualmente por outros coronavírus, o novo coronavírus (2019 – nCoV) tenha sido originado no mercado daquela cidade, onde se vendia carne de animais selvagens, incluindo morcegos e víboras. E também que um grupo de cientistas chineses revelou que o 2019-nCoV é quase idêntico aos outros coronavírus, transmitidos por morcegos. Estas constatações sugeriram-me uma breve reflexão sobre a pandemia que entendi partilhar com os meus estimados leitores, agora, porventura, com mais disposição e paciência para me acompanharem. A primeira ideia que gostaria de salientar é que, apesar dos progressos técnicos e científicos que o mundo vem experimentando, não deixa de ser irónico que um simples episódio vírico-gastronómico, ocorrido numa cidade dos confins da Ásia, tenha tido potencial para, num curtíssimo espaço de tempo, se espalhar por 175 países, infectar mais de dois milhões de pessoas e matar mais de 130 mil! A segunda ideia é a de que, por mais ricas, poderosas e desenvolvidas que sejam as nações, nenhuma estava preparada para lidar com uma pandemia com o impacto desta. Faltava quase tudo: desde instalações hospitalares a ventiladores, passando pelos materiais mais simples, como máscaras, viseiras, luvas e fatos. E está ainda por descobrir a vacina capaz de a evitar, bem como a medicação específica para curá-la. O terceiro pensamento traduz-se na percepção da necessidade premente de os países estarem unidos e serem solidários nas estratégias de protecção da saúde, do meio ambiente e da natureza. O mundo tornou-se pequeno, fez-se aldeia global, onde o que se passa em cada casa e lugar tem imediata repercussão em todos os sítios. Há, pois, que erradicar o vírus do egoísmo que mata o que de melhor tem o ser humano – a capacidade de amar e ajudar os outros. A globalização e o modelo de sociedade que à sua luz se organizou podem e devem desencorajar novas pretensões de dominação política, económica e religiosa e potenciar a construção de comunidades abertas e democráticas e uma ordem internacional multilateral ou multipolar. E se é certo que a pandemia veio aumentar o poder dos Estados, também é verdade que incrementou a sua interdependência. Por isso, não faz sentido a continuação de disputas geopolíticas nem de estéreis guerras tecnológicas e comerciais que devem ser substituídas pelo desenvolvimento de laços de cooperação e de solidariedade. Uma outra ideia que a Covid-19 evidenciou, através da quarentena forçada a que obrigou, foi a de que vale a pena olhar pela natureza, pelo ambiente, pela nossa casa comum, e de as conservarmos limpas e asseadas. Sem aviões, sem carros, sem sujidades que as pessoas espalham por toda a parte, com menos incêndios e acidentes e com menor prática de crimes ambientais, o ar está mais puro, o mar e os rios estão mais limpos, ouve-se melhor o chilrear dos pássaros e podem cheirar-se mais intensamente os perfumes florais que a primavera vai espargindo com toda a sua força renovadora. A quinta e última ideia que pretendo destacar reside no regresso em força do humanismo. Entre duas colheres de sopa de morcego, o chinês de Wuhan, involuntariamente, mostrou a fragilidade da espécie humana, apesar dos avanços tecnológicos e dos progressos científicos contemporâneos. Afinal o “Homem-Deus” ou o “super-homem” – de que falam pensadores como Yuval Harari – cuja inteligência teria sido capturada e ultrapassada pela inteligência artificial, pela cibernética, pelo poder dos algoritmos e pela tecnologia digital e que, supostamente, lhe permitiria “dominar a fome, as pragas e a guerra”, tem pés de barro, como esta pandemia claramente demonstrou. Neste contexto, aproveito a recente vivência da Páscoa da Ressureição para formular votos de que o Redentor ilumine o caminho da humanidade, a livre da pandemia, a oriente para a paz e fraternidade universais e lhe permita enxergar o verdadeiro sentido da vida.
Autor: António Brochado Pedras
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17 abril 2020