Na cartografia da globalização da morte provocada pela pandemia do corona vírus, o Brasil tem ocupado tragicamente um lugar cimeiro no cômputo diário das vítimas falecidas. As imagens que as estações de televisão difundem dos cemitérios nos quais são inumados multitudinariamente, algumas vezes pela calada da noite, milhares de mortos são terrificantes.
Parece ter faltado ao Brasil, desde o início da pandemia, uma política coerente no combate à peste da covid-19, como demonstra a precária duração governativa de sucessivos ministros da Saúde (há poucas semanas tomou posse o quarto ministro da Saúde do governo de Bolsonaro). Para minorar o índice de letalidade da pandemia, teria sido necessário tomar medidas severamente restritivas da actividade económica, as quais seriam fortemente lesivas do emprego e da estabilidade social. A organização federal da República brasileira, imposta pela diversidade territorial, antropológica e económica do país gigantesco que é o Brasil, dificulta a adopção de uma política coerente à escala nacional. Um problema análogo se verifica em países que são também Estados federais, como os Estados Unidos da América e como a Alemanha. Um Estado como o de São Paulo tem problemáticas sociais e económicas muito diferentes das problemáticas de um Estado como o Acre.
Portugal tem relações históricas, culturais e políticas, tão profundas e tão ricas, com o Brasil que a tragédia que se abateu sobre as terras de Vera Cruz tem ressonâncias afectivas muito especiais nos portugueses. O Brasil, que o príncipe regente e futuro rei D.João VI incorporou no reino de Portugal – reino Unido de Portugal, do Brasil e do Algarve –, foi obra dos colonos, dos soldados, dos missionários e dos juristas portugueses. Quando no dia 7 de Setembro de 1822, o Brasil declarou a sua independência política, foi proclamado como Imperador do novo Estado um príncipe português, o infante D. Pedro, filho primogénito do rei D. João VI. Ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, o Brasil foi país de acolhimento de muitos milhares de emigrantes portugueses, oriundos sobretudo do norte e do centro de Portugal. A língua comum facilitava a integração dos emigrantes no mercado de trabalho e o crescimento económico do novo país proporcionava atraentes condições de vida, tendo numerosos «brasileiros» granjeado avultadas fortunas.
As relações culturais, sobretudo as relações literárias, ganharam amplitude e profundidade ao longo das últimas décadas do século XIX, devendo ser sublinhada neste domínio a acção do Imperador D. Pedro II, admirador de grandes vultos da literatura portuguesa como Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco. Em meados do século XX o Brasil acolheu numerosos intelectuais portugueses adversários do regime político do Estado Novo , dentre os quais destaco Agostinho da Silva, Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa, Jorge de Sena e Casais Monteiro.
Portugal e o Brasil, tendo partilhado séculos de história comum, tendo herdado e construído um património cultural substantivamente comum, com especial relevo para a língua, afirmaram-se naturalmente como países irmãos, com as semelhanças e as diferenças que se verificam entre todos os irmãos. O irmão mais novo é, sob os pontos de vista geopolítico, económico e cultural, uma grande potência mundial, da qual o irmão mais velho se deve justamente orgulhar. A irmandade de Portugal e do Brasil não é fruto de um regime político ou de um governo, é fruto da dinâmica da história e da vontade profunda de dois povos. Por isso a tragédia que o Brasil está a sofrer com a terrível pandemia tem de ser entendida e sentida também como uma tragédia de Portugal.
O autor não escreve segundo as normas do chamado acordo ortográfico.
Autor: Vítor Aguiar e Silva
O Brasil e a tragédia da pandemia
DM
1 maio 2021