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O banco de pedra falante

Estava ali aquele banco de pedra. Já tinha sido assento privilegiado no tempo em que não havia por ali esplanadas com cadeiras de plástico. Agora vivia isolado, cheio de musgos que o cobria como lepra, sozinho, ignorado e escondido naquelas sombras que se espreguiçavam a espaços. Metia-me pena aquele banco de pedra e metia-me pena porque o tinha conhecido bem útil para pernas cansadas; naquele passado, o presente era uma impiedade. Olhei para ele e lembrei-me de Guerra Junqueiro quando a Lágrima se deixou cair sobre o cardo agreste, onde nunca “ouvira trinar, gorjear a música dos ninhos”; na solidão sem esperança daquele banco de pedra, sentei-me para que sentisse em si, novamente, o seu préstimo; foi um bom bocado; ouvia os sons que de longe ali chegavam em ecos abafados; distraí-me por momentos. A ação é inimiga do pensamento. Pareceu-me ouvi-lo dizer, em sussurro tão baixo que mais parecia uma viração, olha, amigo, o desejo de não poder morrer torna-se-me insuportável. Podia um banco de musgo falar? Se o D. Francisco Manuel de Melo deu voz a Os Sinos Falantes, porque não o banco de pedra também falar? No meio da balbúrdia destes pensamentos tresmalhados, aproximaram-se dois velhos. De longe pareceu-me que se amparavam mutuamente para que um fosse a bengala do outro. Cada passo era uma paragem ofegante. Parecia uma via dolorosa, como são todas as que percorrem caminhos impostos por algozes. Ao aproximarem-se de mim e do banco de pedra musguento onde estava sentado por dó do seu útil passado, reconheci um dos velhos. Tinha sido diretor-geral do ensino secundário, pessoa muito influente no seu tempo; nesse tempo não era o cardo de Junqueiro, era “uma flor” que ouvira trinar o gorjeio da lisonja, a pedincha da colocação e a oferta do presente gordo. O outro não sabia quem era. E quem são eles agora? Foi contínuo do liceu, durante décadas, onde nunca um sinal de apreço pingou pelo seu trabalho. Este fora sempre cardo. Vinham falando do tempo em que eram assim? Não sei, sei que caminhavam arrastando os pés, como se fossem forçados com grilhetas. Como seria isto possível? Fiquei atónito. Esta camaradagem, por que razão não fora possível no tempo em que um era diretor-geral e o outro contínuo? Porquê só agora! Porque cada um viveu numa paliçada diferente. Esperei que se sentassem em comunhão de cavaqueira. Ali ficaram e eu virei-me de costas; fiquei satisfeito ao ver banco de pedra musguento adquirir a sua serventia. Esta ciática é a vida, disse o outro. É o que todos dizem quando não há nada para dizer; a fingir desinteressado escutei aqueles dois velhos falarem do seu passado: bocados soltos, folhas caídas de primaveras passadas. Como contas de um rosário, as palavras saiam num embalo de amargas saudades. Mas notava-se que cada recordação tinha uma amargura diferente: um chorava pelo que fora e já não era; o outro chorava pelo que era e nunca fora. Sem se poder calar, perguntou assim o banco de pedra musguento: Sr. Doutor, onde estão os que lhe levavam flores? Ele respondeu: estão a plantá-las no novo jardim. É a vida, aquilo que se diz quando não há nada a dizer.


Autor: Paulo Fafe
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18 julho 2022