Encontrei, ou melhor, fui encontrado por um velho amigo, daqueles que o tempo cimentou uma amizade sólida. Vou para a aldeia, para a agricultura, disse-me naquela voz sonora e firme que muito jeito faria a quem dá voz de comando. Ele é um velho professor de mais de noventa anos, mas tão vigorosos e sadios que não tem essa idade. Fiquei-me a pensar que apelo é aquele que arrasta um homem com esta idade para os campos da lavoura? Será aquele aroma do campo que rescende das ervas cortadas de fresco, os cheiros das flores e estevas, os pinheiros ainda pingando resina, o vinho doce, etc. etc! Mesmo na cidade, ainda hoje tudo isto enche de memórias aqueles que tiveram a dita de viver no campo a infância liberta e a plenos pulmões. Mas por que razão é este meu amigo um apaixonado lavrador? Não sei falar por ele mas quase adivinho que são esses campos entumecidos de seiva que em cada primavera cria novos rebentos, os odores da vessada em dia de grandes lavouras, o corte das podas, as enxertias, o pisar das uvas, o fervilhar dos insetos na sua labuta de polinização, o glu-glu das águas vadias guardando segredos… um sem número de cores variegadas que aqui desmaiam em tons de amarelo, acolá vestem-se em pálidos azuis ou garridos vermelhos… será isto atração bastante para aquele nonagenário vigoroso como o velho tronco do roble que desafiou tempestades ou do castanheiro que todos os anos se cobre de ouriços, ir até lá? Que coisa magnífica deve ele sentir para ter este apelo telúrico. Eu sei que o homem naquele ambiente é livre como as aves, tão livre como as árvores duma selva onde a poda não moldou as copas e a modernidade não impôs limitação de espaços. Sentado e entregue aos meus pensamentos ficou-se-me a cogitação de ele ser o que é! Porquê? São as perguntas das crianças para as quais nem sempre temos respostas. Ele é assim porque ama a terra como mãe amorosa. Veio-me à lembrança a força do amor telúrico de que nos fala Miguel Torga; depois veio Jacinto, o doente de tédio de Paris, que Eça leva para Tormes e aí se apaixona pela rudeza da terra, pelo caldo de favas com chouriço, ou do colchão de palha; ele que sendo menino das modernidades de Paris, foi capaz de se tornar aldeão. Há apelo e atração pela vida da aldeia, e eu revejo-a, no meu velho amigo de Rendufe, o mesmo apelo que encantou Jacinto. Que há de mais sincero que a natureza? Nem os seus odores são perfumes de laboratório, nem as suas cores são maquilhagem de perfumaria. Tudo ali vive beleza e tudo ali é verdade. Até os pássaros não têm gaiolas. Vi-o sair e, na ombreira da porta que lhe ia comendo a figura altiva, ficou em mim aquela inveja de quem não sente amor para tanto amar. E quanto Portugal precisa deste amor! Se todos fôssemos como o meu amigo não veríamos tanta terra por lavrar, tanta sementeira por fazer, tantos matos a provocar incêndio e tantos “doutores” fazendo do desemprego o seu nada. Este meu amigo foi buscar à História de Portugal D. Dinis e fez-se valido do rei Lavrador. Faz jus a quem é monárquico.
Autor: Paulo Fafe