As projeções a longo prazo são pouco fiáveis ou, como se diz na linguagem comum, “valem o que valem”. Todavia, quando são preocupantes, se ostentam alguma verosimilhança, justificam o apelo à atenção do caro do leitor.
Um relatório acabado de divulgar pela OCDE, incidindo sobre a evolução dos rendimentos de diferentes camadas sociais e etárias em Portugal, para lá de sustentar que os jovens de hoje deverão continuar a desfrutar de condições materiais de vida manifestamente inferiores, em média, às dos seus ascendentes (tal como sucederá com aqueles que estão abaixo dos quarenta/cinquenta anos quando alcançarem a sua reforma), avança que no nosso país são necessárias cinco gerações, em termos médios uma vez mais, para que aqueles que nascem no seio da pobreza possam ultrapassar essa indesejável condição. Relatórios anteriores têm insistido em conclusões assemelhadas.
A crise dos anos recentes, decorrente desde 2009/10 até ao fim dos anos da famigeradatroika(2014), varreu o nosso país com um maior índice de desemprego (atenuado, embora, por uma nova e expressiva vaga emigratória) e uma acentuada compressão dos rendimentos dos assalariados, quer devido a cortes diretos, como sucedeu designadamente na função pública, quer ainda por via do aumento generalizado de impostos sobre os rendimentos do trabalho.
Por seu lado, as classes médias transmutaram-se e, debilitadas, aproximaram-se da base da pirâmide social. Inevitavelmente, como causa a montante, muitas empresas desapareceram neste período.
Entretanto, a crise está quase oficialmente declarada extinta (a famosa “viragem da página da austeridade” tantas vezes alardeada pelo atual primeiro-ministro) mas a receita troikianano respeitante à remuneração do vetor trabalho e à consequente distribuição de rendimentos deixou marcas severas.
Das leis ou medidas que ditaram (e ditam) os sacrifícios a adotar não resultou um impacto social uniforme. Conceda-se, todavia, que o cutelo da dívida pública sobre os orçamentos de estado dos próximos anos (ou seja, os juros e as amortizações a pagar) mantém-se ameaçador para qualquer governo, dificultando a adoção de expedientes populares, necessariamente dispendiosos.
Revisitemos o passado contemporâneo. Na segunda metade do século XIX, a política fontista das grandes obras públicas redundou numa exponencial progressão da dívida do estado português, que pagava crescentes juros à banca europeia e alimentava o capitalismo rentista nacional (que preferia comprar títulos dessa dívida pública a avançar para investimentos produtivos).
Mais recentemente, as famosas PPP (parcerias público-privadas), que desde a década de noventa do século passado ajudaram ao renovado fontismo, ficaram blindadas, dizem-nos, em contratos muito onerosos para o estado português.
A par do custo das famosas ajudas aos bancos, estas PPP, versão moderna do apetite rentista do capital, transformaram-se num insustentável fardo que os contribuintes portugueses carregarão por muitos anos.
Particularmente no decurso da vigência do atual governo verificou-se um tímido incremento do rendimento disponível para muitos assalariados, sendo que os recentes aumentos do salário mínimo, por força de lei, muito contribuíram para tal.
A mudança maior, contudo, ocorreu para os muitos milhares que encontraram finalmente um emprego, ainda que modestamente remunerado, por regra, como se deduz do facto de a produtividade ser agora menor, considerado o acrescido volume total de empregados.
Não obstante, deve enfatizar-se que uma minoria de cargos de topo nas empresas passou a usufruir de remunerações muito mais generosas do que sucedia antes da irrupção da referida crise, dizem também as estatísticas.
Numa espécie de seleção darwiniana viciada, estas elites, com poder para definir os parâmetros da sua celestial remuneração e prémios, desdenham a vil condição dos comuns mortais que dirigem, remetidos assim para uma miragem da redenção económica almejada.
Para os assalariados insatisfeitos, existe, sabemo-lo, a alternativa do empreendedorismo ou autoemprego, mas por cá, como em qualquer país desenvolvido, tal tenderá sempre a ser uma opção minoritária.
Estas patentes desigualdades estarão a ter também efeitos perniciosos na viabilidade futura do nosso país. A modéstia salarial e a precariedade, a incompatibilidade entre a vida familiar e o trabalho, e ainda o insuficiente apoio público à infância constituem-se em fatores que têm contribuído para um Portugal mirrado no respeitante à natalidade (diversas projeções avançadas, falíveis esperemos, antecipam que Portugal poderá perder cerda de ¼ da população até ao último quartel deste século XXI).
É certo que, com gradações, este problema é comum a mais países europeus, designadamente, denotando mudanças de mentalidade. Mas face à recente e profunda mutação observada em Portugal alguma coisa de relevante deve intentar-se no ataque a causas já bem identificadas (sobre eventuais benefícios que possam advir do Acordo de Concertação Social recém-assinado, aguardemos).
Num país muito desigual, as famílias numerosas deixaram de ser uma marca da pobreza para serem agora, em boa parte, uma afirmação de statuseconómico. Portugal, um país que teima em abrir poucas oportunidades para os filhos do povo ascenderem socialmente, mais parece uma república que reedita velhas linhagens de “príncipes” num universo persistente de humildes plebeus.
Autor: Amadeu Sousa